O objetivo principal da PEC 10 (PEC do Plasma) é viabilizar uma indústria nacional de hemoderivados, o que não é o caso atual, mesmo com a existência e operação da Hemobrás, que já tem 19 anos.
O debate suscitado pela PEC é pertinente e não deve ser confundido com questões acessórias, como a remuneração ou não de doadores de plasma.
Medicamentos derivados do plasma humano, denominados de Hemoderivados, são essenciais e indispensáveis para o tratamento de mais de 20 doenças, algumas letais, como as imunodeficiências e as hemofilias.
A produção de hemoderivados é um assunto estratégico para os países mais desenvolvidos do mundo, como os Estados Unidos da América, os países da Europa e da Ásia. Isso ocorre não apenas pelo aspecto da saúde envolvido, mas também pelo fato de que a indústria de hemoderivados é um importante ativo econômico para esses países.
No Brasil, o assunto já foi considerado estratégico, e inúmeros estudos desde 1964 foram feitos e propostos para tornar o país autossuficiente. Entretanto, o país é totalmente dependente da importação de hemoderivados, sejam as imunoglobulinas, que são fundamentais para o tratamento das imunodeficiências primárias e secundárias, ou para o tratamento de doenças autoimunes refratárias aos tratamentos convencionais. Também é dependente da importação de albumina humana, indispensável para o tratamento de grandes queimados, de pacientes politraumatizados ou que tenham doença renal crônica, entre outras, e da importação de fatores de coagulação para o tratamento de pacientes portadores de coagulopatias, como os hemofílicos.
O grande mérito da proposta original da PEC foi retomar as discussões relativas à indústria de hemoderivados no Brasil e permitir que o país avance para a autossuficiência ou, pelo menos, para diminuir a total dependência atual que se mostrou de forma trágica durante a pandemia de COVID-19.
Essa dependência somente será superada com a construção de plantas industriais de fracionamento de plasma que sejam capazes de atender a demanda nacional de produtos.
A Hemobras, empresa pública nacional, sozinha não será capaz, mesmo quando estiver operando na sua plena capacidade de processar 500 mil litros de plasma por ano, de atender a demanda nacional. Para atender as necessidades atuais de imunoglobulina, albumina e demais hemoderivados, o país precisaria processar pelo menos 2 milhões de litros de plasma por ano, o que exigiria pelo menos mais 3 indústrias com capacidade igual à da Hemobras. Não vejo como a iniciativa pública poderia resolver o assunto considerando que faz 19 anos que a Hemobras foi criada e até o momento não tem capacidade de processamento operacional. A quebra do monopólio público me parece ser a única saída, permitindo a participação da iniciativa privada na instalação de plantas de processamento.
Não basta, no entanto, a instalação destas plantas, visto que a legislação nacional hoje impede que a matéria-prima, no caso o plasma, seja especificamente coletada ou disponibilizada para fracionamento pela iniciativa privada.
A legislação existente não disciplinou a coleta específica de plasma para objetivos de fracionamento industrial. O plasma disponível hoje no Brasil é aquele que sobra das doações de sangue total nos Bancos de Sangue e Hemocentros, denominado plasma excedente.
O Brasil coleta anualmente cerca de 3,4 milhões de unidades de sangue total nos Bancos de Sangue e Hemocentros, tanto públicos como privados. Esse quantitativo poderia gerar, no máximo, 200 mil litros de plasma por ano, que, uma vez processado totalmente, originaria hemoderivados que atenderiam menos de 10% das necessidades nacionais.
Portanto, o plasma excedente existente atualmente e o que poderia vir a existir para atender à capacidade da Hemobras não suprirão as necessidades nacionais. Para o Brasil ter autossuficiência na oferta nacional de hemoderivados, necessidade apontada desde a Conferência de Saúde de 1986, é imperioso disciplinar a coleta específica de plasma para fins industriais, ou seja, a coleta de plasma por aférese, que difere do plasma obtido das doações de sangue habituais.
Permitir a coleta de plasma industrial tanto pela iniciativa pública como privada seria um passo importante para permitir a instalação da indústria de fracionamento plasmático no país. Essa regulamentação depende principalmente de mudanças no ordenamento infraconstitucional, especificamente na Lei 10.205 de 2001. Sem a coleta de plasma industrial, mesmo a Hemobras não atingirá seu potencial máximo de produção de 500 mil litros de plasma, que não estarão disponíveis pela coleta tradicional.
REMUNERAÇÃO
Por princípio, toda doação de sangue ou de plasma deveria ser voluntária e altruísta. A doação de sangue nos bancos de sangue segue esse princípio, e o doador voluntário pode realizar até quatro doações de sangue ao ano.
A doação de plasma, entretanto, é diferente. Nos Estados Unidos o doador pode doar mais de 100 vezes ao ano, já nos países da Europa, há a possibilidade de doação de 600 ml de plasma até duas vezes ao mês, limitando o volume anual a 18 litros (30 doações ao ano).
A maior dificuldade é como manter a fidelidade desses doadores que, por dois dias ao mês, eles teriam o compromisso de realizar a doação para que o sistema seja eficiente. Nesses dias, esses doadores terão que se ausentar do trabalho, se deslocar ao centro de coleta, terão despesas de transporte e de alimentação e eventualmente poderão ter despesas com medicamentos ou assistência médica em decorrência de possível desconforto causado pela doação. Não se deve remunerar monetariamente esses doadores por princípio, mas também não se deve deixar que eles assumam o ônus integral dos prejuízos que sofrerão em razão da doação.
O que se discute então de forma apropriada na Europa e em outros países é como compensar os possíveis prejuízos ou como afastar os desincentivos às doações regulares de plasma industrial. Repor as despesas ou assistir adequadamente esses doadores quando necessário seria eticamente aceitável e necessário para se atingir os objetivos de coletar os volumes de plasma necessários para movimentar uma indústria de plasma nacional.
Para se ter ideia, para atender as demandas atuais de imunoglobulina no Brasil, seriam necessários o processamento de 14 toneladas de plasma, o que corresponderia a 5,6 milhões de doações de plasma obtidos por aférese. Esse objetivo somente poderá ser atingido mudando a constituição e a legislação decorrente.
O Brasil precisa decidir se avança na construção de uma indústria de fracionamento de plasma que atenda suas necessidades ou se permanece na atual grave situação de dependência.
Facebook