Política

Especial césio-137 – IV

Publicado

em

Dia 29 de setembro de 1987. Naquele dia, Goiânia aparecia para o Brasil e para o mundo como palco do maior acidente radioativo ocorrido fora de uma usina nuclear. Apesar de descoberto pelas autoridades nessa data, havia 16 dias que a cápsula com o césio-137 vinha sendo manipulada, o que deixava dezenas de pessoas contaminadas.

Trinta e cinco anos depois do acidente vir à tona, publicamos a quarta e última reportagem do Especial Césio-137, mostrando mais um pouco do que foi o acidente e como está o bairro três décadas e meia após o ocorrido. O leitor dispõe de novas revelações, dadas por pessoas que participaram dos eventos e que foram entrevistadas agora, além de farta pesquisa em veículos de comunicação que cobriram os fatos e seus desdobramentos.  

Centro Cultural do Mercado Popular da 74. Local histórico de Goiânia. Com programação musical diversificada, priorizando um estilo diferente a cada dia da semana, o mercado é ponto de encontro de várias “tribos’. Os shows gratuitos garantem público cativo e, para alegria dos permissionários, clientela para os vários bares e lanchonetes. 

Construído na década de 1950 para ser um centro comercial de vizinhança, passou por diversas fases até chegar ao perfil atual, com a realização de atividades artísticas e comércio voltado a atender os frequentadores desses eventos. O local, também, abriga estabelecimentos de outros ramos, como a tradicional loja de calçados do seu José Bernard. 

Mas a aura alegre e o burburinho próprio de lugares com grande movimentação de pessoas, que quase sempre foram características do mercado nestes 70 anos de funcionamento, independente do perfil, foram interrompidos no ano de 1987, pelo acidente radioativo com o césio-137.

A casa do catador de materiais recicláveis Roberto Santos, para onde a cápsula com o elemento radioativo foi levada inicialmente, ficava na Rua 57, a poucos metros do mercado. No dia em que se descobriu que a bomba com o elemento radioativo começou a ser manipulada ali bem pertinho, as vias ao redor foram evacuadas, moradores tiveram que deixar suas casas e o mercado foi fechado. A medição dos níveis de radiação nas proximidades comprovou: houve vazamento e contaminação por cloreto de césio em vários pontos da vizinhança. 

O comerciante Jair Onofre do Prado, mais conhecido como Jajá, conta que a interdição do mercado não durou muitos dias. Como não houve contaminação da área interna do centro de compras, a entrada principal (pela Rua 74) foi liberada e as lojas, autorizadas a abrir, permanecendo fechada a portaria que fica nos fundos, na rua 57-A. 

Comércio prejudicado

Mas, segundo ele, a reabertura do comércio foi uma medida sem nenhum efeito prático. “As lojas reabriram, mas não tinha cliente, ninguém vinha comprar nada aqui. As pessoas tinham medo, não passavam nem aqui perto”,  relembra Jajá, que há 51 anos tem comércio no local. Sem os fregueses para adquirir os produtos, os comerciantes foram, pouco a pouco, fechando as portas. 

Para Jair, que na época tinha uma lotérica no mercado, o prejuízo foi ainda maior. Além do comércio ser vizinho de um dos locais de maior contaminação com o césio-137, a casa dele também ficava em outro ponto crítico do acidente, no bairro. O comerciante morava no edifício Célia Maria, em frente ao lote onde funcionava o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, na Rua Francisca Costa Cunha D. Tita, antiga 26-A. 

READ  Inpa inaugura laboratório com nível de biossegurança especial

No dia em que o vazamento do elemento radioativo foi descoberto, Jajá foi mais uma, das dezenas de pessoas que tiveram que sair às pressas de casa, praticamente com a roupa do corpo. “O pessoal que fez o isolamento da área só deixou a gente entrar no prédio para pegar documentos e sair rapidamente. Tive que pegar a família e ir morar na casa da minha sogra nos primeiros dias. Depois o governo alugou um imóvel por três meses para que tivéssemos onde morar.” 

Sem saber o que poderia acontecer no futuro, ele acabou vendendo o apartamento, onde morava antes do acidente, por cerca de 25% do valor de mercado.  

Outro comerciante que acompanhou de perto tudo que aconteceu naquele setembro foi Daniel Henrique de Lemes, porém, com um olhar bem mais despreocupado, já que na época era uma criança de apenas 8 anos. Apesar da pouca idade, a movimentação diferente daqueles dias nunca saiu da sua memória.

Filho de Geraldo Lemes, fundador de uma tradicional e pioneira pastelaria do mercado, Daniel cresceu no centro comercial e nas imediações, já que a família também residia ali perto. Ele conta que as crianças da região acabavam burlando a fiscalização e brincando no meio das máquinas e dos operários que trabalhavam na remoção dos rejeitos do acidente. Assim como a meninada, muitos trabalhadores não tinham noção da gravidade do que se passava ali. 

Segundo o relato do comerciante, enquanto as crianças se divertiam com a movimentação do lado de fora, dentro do mercado as lojas ficaram desertas. “O mercado já estava meio decadente, as instalações físicas deterioradas, mas aqui era cheio de gente, que na época vinha comprar fruta, verdura, carne, esse era o perfil, na época. Com o césio, houve uma queda brusca no movimento. Só vi o mercado desse jeito naquela época e agora, na pandemia”, diz ele. 

Reforma

De acordo com os entrevistados, muitos anos se passaram até que a clientela voltasse a frequentar o local. Jair e Daniel relembram que, após o acidente radioativo, o poder público fez uma pequena reforma no centro de compras, mas as intervenções não foram suficientes para mostrar aos fregueses o caminho de volta ao local. 

Os lojistas afirmam que foi apenas no novo milênio que o antigo mercado conseguiu reencontrar seu público, e foi necessária uma volta às origens, para que o povo voltasse a frequentar o local. 

Por uma iniciativa da mostra de arquitetura CasaCor, em 2006, o espaço foi totalmente revitalizado. A reforma resgatou a arquitetura original da fachada, o que deu ao local um charme nostálgico das primeiras décadas da cidade e levou de volta um público cativo aos estabelecimentos. 

READ  Deputado Jeferson Rodrigues propõe debate sobre crise hídrica no estado. Evento remoto será na segunda-feira, dia 9

Com o espaço renovado, o local passou a sediar eventos culturais. A área interna virou palco para apresentações de diversos estilos musicais, o que atraiu ainda mais gente para o mercado. E foi assim até que, em 2020, a pandemia provocada pelo coronavírus fez os permissionários baixarem novamente suas portas, mas isso é história para se contar em detalhes, em outro momento. 

Com a reabertura, em 2021, mais uma vez, os comerciantes retomaram suas atividades e, dessa vez, o público não tardou a aparecer, pelo contrário, logo voltou a ocupar as cadeiras dos bares, restaurantes e lanchonetes e a curtir os variados ritmos musicais apresentados no mercado. 

Mesmo tendo vivido tão de perto a tragédia causada pelo césio-137, permissionários e frequentadores parecem ter superado o ocorrido. No transcorrer destes 35 anos, as alterações na rotina, os prejuízos, a debandada dos clientes e todas as outras perdas foram ficando perdidas no tempo.

Segundo Daniel Henrique, os fregueses da pastelaria, mesmo os mais antigos, pouco falam do acidente radioativo e de suas consequências. “Acho que foi superada, assim como a outra tragédia famosa acontecida aqui pertinho, que foi o assassinato da família Mateucci, foi superada”, diz ele, referindo-se ao crime ocorrido em 1957, quando um casal e quatro dos cinco filhos foram mortos a machadadas. Até hoje a motivação dos homicídios permanece misteriosa.

Jair Onofre faz coro com o colega de mercado, no que diz respeito à superação do acidente. Segundo ele, o césio-137 não é assunto entre os fregueses habituais, e o que acontece, esporadicamente, é a presença de estudantes, pesquisando sobre o tema, ou ainda, pessoas de fora da cidade, até em ônibus de excursão, que perguntam sobre o acidente e tiram fotografias do lote da Rua 57, que continua sem uso, assim como o terreno da Rua 26-A. 

Para o comerciante, que conhecia os principais personagens (que também foram as principais vítimas) da radiação e viu tudo acontecer, o distanciamento trazido pelo tempo não minimiza as sequelas psicológicas. “A discriminação passou, o bairro superou, mas o trauma ficou, a gente não esquece. Parece que foi ontem”,  relata o popular Jajá. 

A despeito das mortes e de todas as outras consequências do acidente com o césio-137, o bairro parece mesmo ter deixado a tragédia lá atrás. Mesmo nas áreas mais atingidas, a vida segue, sem quase nenhuma lembrança dos fatos ocorridos em 1987. 

Se por um lado é positivo que o bairro e a cidade tenham suplantado o acidente, que o preconceito tenha diminuído, por outro é inadmissível que se permita que a tragédia caia no esquecimento. Por mais doloroso que seja reabrir a ferida, a lembrança é necessária, para evitar que se repita, para que as reivindicações das vítimas sejam atendidas, para que as dúvidas que ainda pairam sobre os efeitos a longo prazo da radiação sejam dirimidas, para que a memória dos que morreram, seja honrada.

Essa foi a motivação dessa série de reportagens sobre os 35 anos do acidente com o césio-137. 

Fonte: Assembleia Legislativa de GO

Comentários do Facebook
Propaganda
Clique para comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

CIDADES

PLANTÃO POLICIAL

POLÍTICA

ECONOMIA

MAIS LIDAS DA SEMANA