Política
Luta pela terra
No dia 17 de abril o Brasil comemora o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. Nesta data, há exatos 26 anos, o país vivia uma das cenas mais dramáticas de sua história recente, quando 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados pela polícia do Pará, por reivindicarem o direito de acesso a um pedaço de terra no estado. O episódio ficou conhecido como “massacre de Eldorado do Carajás”.
Embora seja uma constante na história do Brasil, os movimentos de luta pela terra ganharam maior repercussão a partir de meados do século passado. As Reformas de Base protagonizadas pelo governo de João Goulart (Jango) deram início ao processo de reorganização e democratização fundiária, mas logo foram interrompidas pelo golpe militar de 1964. Nesse mesmo ano foi promulgado, no entanto, o documento que, ainda hoje, é tido como a principal referência na área, o Estatuto da Terra.
Segundo este, a reforma agrária implica em um conjunto de medidas que visam promover uma melhor distribuição da terra. Elas devem ser alcançadas mediante modificações no regime de posse e uso das propriedades rurais e tem como finalidade atender aos princípios de justiça social, bem como garantir o aumento da produtividade no campo.
Função social da terra
Esse é o principal conceito trazido pelo Estatuto da Terra de 1964. O princípio deve ser observado, indiscriminadamente, por todos os imóveis rurais. Para alcançá-los, é necessário que cada propriedade seja capaz de favorecer o bem-estar dos proprietários e trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias.
Além disso, elas também precisam manter níveis satisfatórios de produtividade, assegurar a conservação dos recursos naturais e observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre patrões e empregados. O direito de posse das propriedades está, portanto, diretamente atrelado ao cumprimento desses requisitos. O desrespeito a eles é pauta dos movimentos de luta pela terra e também o principal argumento utilizado para as desapropriações destinadas à reforma agrária.
Embora o Estatuto esteja em vigor há quase seis décadas, o tema só foi alavancado a partir da promulgação da Constituição Federal, em 1988, especialmente pelo artigo 186. É nele, que o Estado brasileiro assume, finalmente, o compromisso de realizar a tão sonhada reforma agrária, que vinha sendo almejada, no país, desde os tempos de Jango. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que já existia desde 1970, passa a ser o órgão responsável pela execução de toda a política fundiária no Brasil.
Desafios
Não obstante a reforma agrária seja um direito assegurado pela Constituição brasileira, o assunto permanece sendo alvo de muitas polêmicas. Isso se dá, particularmente, porque a pauta da redistribuição de terras, no Brasil, é um tema que se encontra em permanente conflito com a base da economia do país: o agronegócio.
O setor é responsável pela produção das chamadas commodities agrícolas, que se destacam como os principais componentes do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o mercado, que movimenta mais de 100 bilhões de dólares anualmente, lidera o ranking das exportações de soja, café, açúcar, laranja e carne bovina, a nível mundial.
Para sustentar essas produções em larga escala e alimentar o insaciável mercado financeiro global, perpetua-se, aqui, o modelo de exploração colonial, baseado na monocultura, agora, possibilitada pelo alto consumo de agrotóxicos, e no latifúndio. O Atlas do Agronegócio, publicado, em 2018, pela Fundação Rosa Luxemburgo, coloca o Brasil como sendo o 5º país com maior concentração de terras do mundo.
“Se formassem um país, os latifúndios brasileiros seriam o 12º maior território do planeta, com 2,3 milhões de km², área maior que a Arábia Saudita”, relata o documento. Ainda segundo ele, toda essa magnitude de terras, que respondem por cerca de 45% da área produtiva no Brasil, estava concentrada em apenas 0,91% das propriedades rurais. Esses dados também estão reiterados no Censo Agropecuário, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em contrapartida, quem abastece o mercado alimentício nacional permanece sendo a agricultura familiar, que é praticada em pequenas propriedades. Estima-se que cerca de 70% dos alimentos que vão parar na mesa dos brasileiros, sejam produzidos por esse segmento, que possui, no entanto, menor acesso a crédito e menor destaque na mídia.
Retrocessos
O professor de Geografia da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Edson Batista da Silva, chama atenção para os retrocessos nas políticas agrária e agrícola, que afetam o campesinato no Brasil e em Goiás, nos últimos anos. Para ele, um dos indicadores mais relevantes pode ser notado na redução dos repasses para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que caiu de R$ 81,5 milhões, em 2013, para R$ 28,6, em 2019. “Num país com aproximadamente 19 milhões de brasileiros(as) famintos, o PAA representa fornecimento de alimentos de qualidade a restaurantes populares, creches, asilos, abrigos, em suma, combate a insegurança alimentar”, defendeu.
O professor, que é doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), destaca, ainda, que o programa, ao contemplar questões de gênero em sua implementação, tem contribuído para melhorar a condição financeira das mulheres no campo. “Entre 2009 e 2018, o rendimento delas cresceu de 21% para 84%”, acrescentou. Já no que se refere especificamente à realidade goiana, o especialista destaca que, de 2011 a 2016, o PPA reuniu mais de 11 mil participantes. Destes, 81,6% estavam enquadrados na categoria de agricultores familiares.
Edson Batista também lamenta retrocessos no âmbito da criação de assentamentos. Segundo ele, o movimento denota um processo de radicalização da luta contra a reforma agrária. “Os dados do Incra, de 2020, revelam que, em 2019, não houve sequer uma desapropriação com essa finalidade, mas se assistiu à explosão de 1.833 conflitos no campo, dos quais 1.254 são conflitos por terra e envolveram 53,31 milhões de hectares. Além disso, se assistiu à explosão do consumo de agrotóxicos, com 550 toneladas, em 2017”, relatou.
Para o professor, a situação é sintomática da luta, em curso, contra a reforma agrária, atestando, inclusive, a negligência do estado brasileiro com o artigo 186 da Constituição. “O que está sendo priorizando, neste momento, é a economia extrativista neoliberal das commodities. Em razão disso, vivemos o acirramento do enfrentamento aos movimentos sociais, aos povos indígenas e às comunidades quilombolas”, denunciou.
Como exemplo, ele citou, ainda, dois projetos leis em tramitação no Congresso Nacional: o 191/2020, que regulamenta a exploração, por terceiros, em terras indígenas, e o 2.633/2020, conhecido como PL da grilagem. O professor informou que este último permite a regularização de áreas de até 1.650 hectares, por autodeclaração, sem a devida verificação de ocorrência de crimes trabalhistas, ambientais ou qualquer tipo de fiscalização. “Os desafios são imensos para o conjunto das populações do campo. A luta atual é para o direito de ser e existir no campo”, arrematou.
Discussões na Alego
Na Alego, a pauta é tema de discussão especializada no âmbito da Comissão de Habitação, Reforma Agrária e Urbana da Casa. O presidente do colegiado, deputado Wilde Cambão (PSD), destaca estudos técnicos recém realizados sobre assentamentos do Entorno do Distrito Federal.
Segundo o parlamentar, a iniciativa serviu de base para identificar as carências da região, o que tornou possível o encaminhamento de diversas providências. “Essas ações incluem, por exemplo, viabilizar títulos definitivos e convênios junto ao Incra, além de créditos habitacionais para a construção de casas em assentamentos rurais e compras de equipamentos e insumos”, pontuou.
Ele também destacou projeto de sua autoria, que propõe a isenção de taxas, emolumentos e custas, em benefício dos assentados da reforma agrária. “Apresentei essa proposta porque a pessoa recebe o título da terra, por exemplo, mas não tem condições de arcar financeiramente com as taxas”, esclareceu o peessedista. A matéria esteve em tramitação na Casa sob o processo de nº 1850/19, que aguarda a votação plenária do veto integral dado pela Governadoria do Estado.
Em balanço divulgado no início do ano, foi colocado, ainda, em destaque a discussão do projeto de lei nº 5249/20, de autoria do deputado Chico KGL (DEM). A matéria, que já conta com parecer favorável da Comissão de Constituição Justiça e Redação (CCJ), tem o propósito de promover a democratização do acesso ao espaço urbano e rural, ao autorizar o Poder Executivo a realizar o Cadastro Único Habitacional do Estado de Goiás.
Esse cadastro tem o objetivo de integrar um banco de dados de todas as ações estadual e municipais que envolvam a distribuição de unidades habitacionais. O intuito é o compartilhamento de informações sobre os cidadãos que já foram contemplados com os programas.
Também é destaque neste âmbito, o projeto nº 1806/19, da deputada Delegada Adriana Accorsi (PT). A matéria, que aguarda a segunda e definitiva fase de votação plenária, visa dar o nome de Dom Tomás Balduíno à lei que institui as diretrizes para a Política Estadual de Agricultura Familiar. O bispo homenageado é considerado um dos grandes defensores da reforma agrária e dos indígenas do estado. O religioso faleceu em decorrência de uma tromboembolia pulmonar, em Goiânia, no dia 2 de maio de 2014.
Em sua homenagem também foi levantado, em 2015, um acampamento de trabalhadores sem terras, no município de Formosa. Segundo o professor Edson Batista, neste mesmo ano, a superintendência do Incra em Goiás, resolveu adquirir o imóvel, considerado improdutivo, com área de 11.117, 19 hectares. A compra foi autorizada com valor total acordado em R$ 86.969.904,63, mas o montante foi contingenciado, em 2017, e até hoje, não foi liberado. Ele informa que, ao todo, 500 famílias estão vivendo e trabalhando, hoje, no local, enquanto aguardam a devida desapropriação da área para a consolidação do assentamento rural.
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