Política
Lei máxima
No último 25 de março, o Brasil comemorou o Dia da Constituição. A data remete ao surgimento da primeira Carta Magna brasileira. Nomeada Constituição Política do Império do Brasil, a norma, que continha 179 artigos, foi outorgada pelo imperador Dom Pedro I, em 1824.
O documento, que permaneceu em vigor por 65 anos e se destaca como o mais duradouro da história constitucional do país, foi adotado durante todo o período monárquico. Ele serviu para organizar a vida política, jurídica e civil nacional após a independência (1822) e vigorou até a proclamação da República (1889).
Considerada autoritária, por alguns, a Constituição de 1824 nasceu, assim, por imposição do imperador. Antes de outorgá-la, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, que havia sido formada após a independência do país, e derrubou o seu anteprojeto constitucional, que ficou conhecido como “a constituição da mandioca”. O ato contou com o apoio de altos funcionários públicos e comerciantes portugueses.
O documento, projetado para ser a primeira Carta Magna do país, tentava limitar os poderes imperiais e defendia os interesses de latifundiários escravocratas. O apelido que lhe foi dado resultou do modelo eleitoral proposto, que previa a instituição do voto indireto censitário mediante a comprovação de renda mínima em alqueires de mandioca plantados, sendo 150 a quantia exigida para eleitores em primeiro grau; 250, para os de segundo; e 500 ou mil, respectivamente, para os candidatos aos cargos de deputado ou senador.
Para alguns historiadores, a medida servia também para indicar quantos escravos o eleitor possuía, visto que o tubérculo e seus derivados, como a farinha, eram a base da alimentação da mão de obra escravizada.
Constituição imperial
Uma das principais diferenças desta Constituição, em relação às outras que a sucederam, estava na presença do Poder Moderador (art. 10), que era exercido pelo imperador. Por meio dele, o chefe supremo da então monarquia constitucional, além de inimputável, centralizava todas as decisões do Estado, estando, portanto, acima do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. “A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma (sic)“, diz o artigo 99 do documento.
A primeira Constituição brasileira também assegurava que o cargo do monarca fosse hereditário (art. 3), sendo transferido aos seus descendentes diretos ou parentes próximos, em decorrência de falecimento ou abdicação ao trono. Privilégio similar também era assegurado aos senadores que, após eleitos nas províncias, passam a gozar de direito vitalício ao cargo.
À semelhança do período colonial (a primeira eleição feita no Brasil data de 1532), o voto permaneceu sendo de caráter censitário, o que o tornava acessível apenas aos mais ricos. A restrição estava inscrita em um dos incisos do artigo 92. Segundo este, “os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos (sic)” ficavam excluídos do processo eleitoral. Para os que desejavam ser eleitos deputados ou senadores, era preciso comprovar, respectivamente, o dobro ou o quádruplo do valor mencionado.
Todos esses valores eram considerados inacessíveis para a maior parte da população da época. Segundo o Censo de 1872, o primeiro a ser realizado no Brasil, a população nacional contava, então, com quase 10 milhões de habitantes, que eram majoritariamente pobres ou escravos (15,24%). Entre os primeiros, a maioria era de negros libertos, analfabetos, que trabalhavam principalmente como lavradores ou em serviços domésticos.
A Igreja, condecorada como religião oficial do país, tinha relações diretas com o monarca e assumia status de instituição estatal. Padres, com cargos eclesiásticos nomeados pelo próprio imperador, recebiam, inclusive, salários como funcionários públicos.
Embora essas regras soem antiquadas para os dias de hoje, razão pela qual foram, todas, inclusive, derrubadas pela Constituição subsequente, promulgada em 1891, a Carta Magna de 1824 é considerada, por alguns especialistas, uma das mais promissoras de sua época.
O escritor, historiador e youtuber Paulo Rezzutti é um dos que compartilham dessa avaliação. “Nenhuma constituição da época, sobretudo considerando a de regimes monárquicos, levava em conta tantos direitos individuais e liberdades garantidas aos cidadãos”, defende, em entrevista publicada na internet.
Dentre essas garantias, Rezzutti lista o reconhecimento do direito à liberdade, incluindo a de expressão e a religiosa; bem como o direito à educação básica, à segurança individual e à propriedade. “A Constituição de 1824 foi considerada uma das mais avançadas da época. Benjamin Constant, famoso intelectual francês, elogiou os artigos propostos por Dom Pedro”, arrematou.
Constituição atual
Hoje, o Brasil é regido por sua sétima Constituição Federal. Promulgada em 1988 e conhecida como a “Constituição Cidadã”, o documento é marco do avanço da democracia no País. Com ela, consolidam-se princípios que foram negados ou subestimados nas Cartas Magnas anteriores, como o voto universal, a cooperação e independência dos três Poderes e a soberania popular.
Essas conquistas se deram após amplo debate público, realizado no âmbito da Assembleia Constituinte de 1987. Ali foram considerados os anseios e necessidades da população brasileira, que passou, a partir de então, a ter acesso a uma ampla gama de direitos sociais, civis e políticos.
Ao longo de seus 251 artigos, a última Carta constitucional do país vem para instituir, portanto, o que chama de Estado Democrático de Direito. Por meio dele, a educação passa a ser um dever do Estado e a defesa do consumidor é assegurada. O pluripartidarismo, as eleições diretas para presidente, o combate ao racismo e o voto de analfabetos e de pessoas acima de 16 anos também são igualmente validados. A garantia da posse de terras para os índios é outro princípio que também deve ser citado entre os inúmeros avanços trazidos pela atual Constituição.
Até o presente momento, a Carta Magna de 1988 já foi alterada por 116 Emendas Constitucionais (EC). Outras várias, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional, na forma de Propostas de Emenda à Constituição (PEC). Em Goiás, a Constituição Estadual, que foi promulgada em 1989, já sofreu, desde então, 71 alterações do gênero.
Dentre as emendas já em vigor, no âmbito federal, e que mais geraram impactos na organização social recente do país, destaque para EC n.º 95/2016 e a EC n.º 103/2019, que tratam respectivamente do Teto dos Gastos e da Reforma Previdenciária. A primeira instituiu o chamado Novo Regime Fiscal, congelando, por 20 anos, o aumento das despesas públicas nacionais. A segunda alterou as regras de concessão e cálculo de aposentadorias e pensões, dos regimes geral e próprio dos servidores públicos federais, instituindo também regras de transição.
Após as devidas validações no âmbito federal, as medidas passaram também a ser acatadas pelos estados. Em Goiás, elas ficaram chanceladas, respectivamente, pelas EC n.º 54/2017 e EC n.º 65. Em todas as esferas, as aprovações se deram sob intensas críticas, aglutinando manifestações contrárias de vários segmentos sociais afetados.
Já no que se refere às propostas de emendas em tramitação, um dos exemplos que mais vêm gerado polêmica e pressão da sociedade civil, a nível nacional, é o da PEC 32/2020, que está apta a ser votada pelo Plenário da Câmara dos Deputados desde o ano passado. A matéria, proposta pelo Governo Federal, trata da chamada Reforma Administrativa, que, caso aprovada, poderá extinguir não apenas a estabilidade no serviço público, mas também outros vários benefícios conquistados pela categoria.
Demais Constituições
Como demonstrado desde a primeira Constituição nacional, as conquistas da Constituição 1988 já vinham logrando alguns avanços parciais em legislações anteriores. A adoção do modelo presidencialista, que se inicia com a primeira Carta Magna republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, é um exemplo.
Intitulada Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, o documento teve, como o próprio nome indica, inspirações advindas do modelo constitucional norte-americano. A partir dela, o país voltou a contar, tal qual hoje, com apenas três Poderes, e o chefe do Executivo passou a ser eleito para mandato de quatro anos (aqui era vedada a possibilidade de reeleição).
O documento também instituiu o federalismo, por meio do qual os Estados brasileiros passaram a gozar de maior autonomia frente ao Governo Federal. O voto se tornou universal, mas mendigos, analfabetos, padres, soldados e menores de 21 anos continuaram excluídos do processo eleitoral (na Constituição anterior a interdição envolvia os menores de 25 anos). O Estado foi decretado laico, ficando seus interesses oficialmente separados da Igreja.
Guardando o mesmo nome da anterior, a próxima Constituição brasileira seria promulgada em 1934, pelo então presidente Getúlio Vargas. O feito se deu em resposta à pressão pela constitucionalização de seu Governo, que havia sido iniciado, em caráter provisório, após o Golpe de Estado de 1930 (também conhecido como Revolução de 1930).
O documento alcançou igualmente notório reconheciemento pelo seu teor democrático e teve como inspiração a Constituição social-democrata da República de Weimar (período da história Alemã compreendido entre o fim da primeira Guerra Mundial, em 1919, e o início do regime nazista, em 1933). A consolidação do voto feminino é listada como a principal conquista desta Carta constitucional.
Mas os avanços, recém alcançados, não tardaram a ser derrubados. No lugar deles, surgiram outros, bem menos democráticos, advindos com a outorga da Constituição de 1937, que foi imposta pelo próprio Getúlio Vargas.
Marca do autoritarismo que deu origem ao Estado Novo, a quarta Carta constitucional concedia amplos poderes ao ditador, que assumia, a partir de então, a figura do antigo presidente. Sepultando os ideais republicanos e democráticos, as atividades parlamentares seriam, mais uma vez, encerradas; os partidos políticos, abolidos; e a censura à imprensa, legitimada. Inspirada nos regimes totalitários da Polônia, Itália e Alemanha, a Constituição de Vargas tinha a cara do facismo europeu da época e, por isso, ficou também conhecida como “polaca”.
Com o fim da ditadura varguista, o país promulgou, em 1946, sua quinta Constituição. Nela, a experiência democrática é recuperada e aperfeiçoada. Liberdades individuais voltam a ser garantidas, agora, ampliadas pelas conquistas recentes da classe trabalhadora urbana (a Consolidação das Leis Trabalhistas se deu no final da Ditadura Vargas, em 1943).
O sistema representativo também foi aprimorado em torno do pluripartidarismo. O voto foi estendido a homens e mulheres maiores de 18 anos. Do ponto de vista econômico, foi considerada a Constituição mais abertamente liberal do país.
Em 1964, o Brasil volta a ser alvo de um novo golpe de estado, que deu início à chamada Ditadura Militar brasileira. Em razão disso, uma nova Constituição foi outorgada em 1967. Com o poder voltando a se centralizar no âmbito do Executivo, o documento legitimou o autoritarismo dos militares, que foi se consolidando a partir da incorporação de várias emendas, advindas de decretos presidenciais nomeados de Atos Institucionais ou Atos Complementares. Por meio desta Carta constitucional, que antecedeu a promulgação da atual, em 1988, a escolha dos presidentes passou a ser de competência privativa das Forças Armadas.
Embora para a maioria dos especialistas a Constituição de 1967 tenha sido a penúltima da história brasileira, há alguns que consideram, ainda, a existência de uma outra, que também teria sido outorgada pelos militares, em 1969. Na verdade, o documento nada mais era do que uma cópia do anterior, mas já reestruturado com a devida incorporação das emendas citadas.
Ao todo, o governo militar se manteve no poder por 21 anos, tendo emitido, ao longo deste período, 17 Atos Institucionais. Por meio deles, os militares imprimiram, no país, um cenário de violência e repressão absolutas, marcando a existência do chamado terrorismo de Estado no país.
“Essa Carta, se comparada com a de 1967, aprofundou o retrocesso político do país, incorporou ao seu texto medidas autoritárias dos Atos Institucionais, consagrando a intervenção federal nos Estados, a cassação da autonomia administrativa das capitais e de outros municípios, a imposição das restrições ao Poder Legislativo e a ampliação das medidas restritivas da Constituição de 1967”. O fragmento foi extraído de texto sobre o assunto, publicado na página da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
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