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Especial césio-137 – II

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Se 35 anos depois do acidente radioativo, muitos goianienses já esqueceram e, entre os mais jovens, há aqueles que sequer sabem do que ocorreu, entre as vítimas do césio, a tragédia continua bem viva: nas memórias daqueles dias, no preconceito que ainda sofrem, na saudade dos que partiram.

Na segunda reportagem especial sobre o acidente, com entrevistas e pesquisas em jornais que cobriram o evento, revela-se que, também, é possível enxergar o ocorrido no olhar das pessoas que da noite para o dia, literalmente, tiveram suas vidas reviradas, deixaram suas casas para trás, viram tudo que tinham se transformar em lixo radioativo, e deram adeus a parentes e amigos.

No dia seguinte à descoberta de que um elemento radioativo havia vazado e contaminado diversas pessoas e lugares, um ônibus da Polícia Militar foi utilizado para levar parentes e vizinhos de Devair Alves ao estádio Olímpico.

No local, equipes da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), munidas de equipamentos capazes de medir o nível de radioatividade, faziam a verificação e a triagem das pessoas, que não paravam de chegar. Os que apresentavam níveis maiores de radiação, eram encaminhadas para internação.

O foco do trabalho era identificar, monitorar, descontaminar e tratar a população envolvida. Em entrevista concedida agora ao Portal Alego, o físico Walter Mendes lembra que o Hospital Geral de Goiânia, que à época era a unidade de emergência pública da capital, foi o escolhido para receber os pacientes. O terceiro andar da unidade foi isolado para o atendimento dos radioacidentados.

Ao todo, 112.800 pessoas foram monitoradas, sendo que 249 tiveram algum tipo de contaminação interna e/ou externa. Entre essas, 120 tinham contaminação apenas em roupas e calçados. Após a descontaminação, elas foram liberadas. Das outras 129, 79 tiveram contaminação externa e receberam tratamento ambulatorial. Dentre os 50 radioacidentados com contaminação interna, 30 tiveram assistência em albergues em semi-isolamento e as 20 restantes tiveram que ser encaminhadas ao Hospital Geral de Goiânia. 

No Rio de Janeiro

Mas, devido à gravidade dos efeitos da radiação, 14 pessoas foram transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Dessas, sete eram da família de Lourdes das Neves: os filhos Leide das Neves Ferreira e Lucimar das Neves Ferreira, o marido Ivo Alves Ferreira, a irmã Luiza Odete Mota, o cunhado Kardec Santos (marido de Odete), o irmão de seu esposo, Devair Alves Ferreira, e a concunhada Maria Gabriela Ferreira.

No mês seguinte, quatro, das sete vítimas que foram se tratar no Rio de Janeiro, voltariam à Goiânia dentro de caixões, vedados por chumbo: a menina Leide, a tia dela, Maria Gabriela, Israel Baptista e Admilson Alves, funcionários do ferro-velho de Devair. 

As pessoas que apresentaram menores níveis de radiação e que permaneceram em Goiânia, a princípio, foram abrigadas em barracas montadas no Estádio Olímpico. A mãe de Leide, Lourdes das Neves era uma delas. Segundo ela, dois dias depois que estavam no local, caiu uma chuva muito forte, o que provocou a transferência dessas pessoas para um prédio do governo do Estado, onde funcionava uma unidade para menores infratores (hoje, no local fica a Casa do Albergado, unidade do Diretoria Geral de Administração Penitenciária). 

Lourdes, que ficou cuidando dos quatro filhos e da irmã, internados no Rio de Janeiro, conta que os dias que tiveram que passar no local foram muito difíceis. Várias vezes por passavam pelo aparelho que media o nível de radiação. Depois vinham os banhos de vinagre e sabão de coco para fazer a descontaminação. Os objetos que eles usavam tinham que ser descartados, viravam lixo radioativo.

A atual presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Suely Lina de Moraes Silva, também enfrentou a dura rotina de monitoramento da radiação. Junto com três filhos pequenos, ela passava pelas intermináveis medições e descontaminações, sempre que houvesse qualquer indício de radiação. Todas as vítimas tomavam diariamente o medicamento Azul da Prússia, usado em casos de intoxicação por césio ou tálio.

Mas o pior para quem estava lá dentro, era a falta de informações. Os pacientes eram impedidos de ter contato com visitas, não podiam ler jornais, nem assistir TV. Lourdes conta que ficou sabendo que o marido e os filhos foram transferidos para o Rio de Janeiro, muitos dias depois que já estavam lá, por um primo que esteve no abrigo, mas não pôde entrar. “Ele ficou do lado de fora e pela tela nós conversamos e ele me contou”, recorda. 

Morte

Pior do que saber que o quadro da filha havia se agravado a ponto de não ter tratamento para ela em Goiás, foi receber a notícia, no dia 23 de outubro, que a pequena não havia resistido ao efeito devastador do césio-137 em seu frágil organismo. No mesmo dia, antes de Leide, Maria Gabriela também havia perdido a luta contra a radiação. “Me chamaram em um quarto e me contaram das duas mortes. Até hoje eu tenho trauma de conversas em uma sala ou quarto reservado”, revela Lourdes.

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Como se fosse pouco todo o sofrimento vivido dia após dia, desde que teve contato com o césio-137, a mãe de Leide das Neves passaria por outra situação das mais dolorosas que enfrentou na vida. No enterro da filha e de Maria Gabriela, no Cemitério Parque, populares protagonizaram um dos episódios mais triste dessa história toda.

Manifestantes, movidos pelo medo, pela desinformação e pela ignorância, e insuflados por um vereador na época, avançaram sobre o cortejo, num violento protesto. Em vez de flores e orações, xingamentos, gritos, pedras e paus atirados contra os caixões. Somente com a repressão da polícia, os sepultamentos puderam ser realizados. 

Do cemitério, Lourdes retornou ao isolamento. Somente no final de novembro daquele ano que parecia não ter fim, as famílias deixaram o abrigo, mas nunca mais puderam voltar para suas vidas.  

Discriminação 

Se para quem está doente, a volta para casa é sempre um momento muito esperado, para as vítimas do césio não foi bem assim. Muitos nem casa tinham mais, já que seis residências tiveram que ser demolidas, outras estavam sendo descontaminadas e ainda não poderiam receber os moradores de volta naquele momento.

Suely Lina foi uma das que não puderam voltar imediatamente para a casa, que ficava quase em frente ao ferro-velho de Devair. Por alguns meses, ela morou em um imóvel alugado pelo governo, mas esse era o menor, dentre os muitos, problemas enfrentados pela família. O que mais a contrariava era o preconceito enfrentado diariamente, principalmente pelos filhos. 

Segundo conta, as crianças com idade entre 5 e 8 anos de idade perderam o ano escolar. Como tiveram que ficar isoladas e perderam muitos dias de aula, foi impossível retornar para a escola. “No ano seguinte, eles foram para uma instituição particular, que o governo do Estado pagou, mas em todo o lugar eram discriminados. Até nas brincadeiras nas ruas com outras crianças, tinha muito preconceito”, recorda Suely, com um olhar distante e sofrido. 

Por vários meses a rotina das famílias atingidas foi quase toda em função do controle dos efeitos da radiação. Segundo Suely Lina, além dos exames e das consultas com médicos, dentistas e psicólogos que faziam mensalmente, na recém-criada Fundação Leide das Neves, até a hora de ir ao banheiro, para os radioacidentados era diferente. “A gente tinha que fazer cocô e xixi em saquinhos, diziam que não podíamos fazer no vaso (sanitário) para não contaminar o lençol freático”, lembra.    

Para a família de Lourdes das Neves, o fardo foi, e ainda é mais pesado. A discriminação veio acompanhada da dor da perda da filha mais nova e de muita culpa, especialmente do marido, Ivo Alves Ferreira, e do cunhado, Devair Alves Ferreira. 

Segundo a mãe de Leide das Neves, a irmã Luiza Odete contou que enquanto estiveram internados juntos, no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, Ivo confessou a ela a vontade de não voltar mais a Goiânia por medo de Lourdes culpá-lo pela morte da filha e não o aceitá-lo mais. “Mas isso nunca me passou pela cabeça. Não foi culpa dele, nem do Devair. A gente não sabia o que era aquilo, nunca tinha ouvido falar em radiação”, diz. 

Mas o sentimento de responsabilidade nunca abandonou os irmãos: Devair se sentia responsável pela tragédia toda e, em especial pela morte da esposa Maria Gabriela, e Ivo, pela morte da filha, já que foi ele quem levou uma porção do césio-137 para casa.  

Vício e depressão

Lourdes conta que, consumidos pela dor, pela saudade, pelo preconceito, mas principalmente pela culpa, Devair e Ivo se entregaram ao vício e à depressão. De acordo com o relato da pensionista, como numa espécie de autopunição, Devair se tornou alcoólatra. Por conta do excesso da bebida, desenvolveu uma cirrose hepática, que o levou a morte, em 1994, sete anos depois do início do martírio causado pelo fascínio pelo azul brilhante do césio-137.

Já Ivo encontrou no tabagismo o seu escape. Segundo a esposa, ele chegou a fumar até seis carteiras de cigarro por dia. Assim como aconteceu com o irmão Devair, o vício o levou a uma doença incurável e ao encontro da morte. O suplício de Ivo durou um pouco mais, até 2003, quando um enfisema pulmonar foi a causa da morte do pai de Leide das Neves. 

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Consequências da tragédia

Se os efeitos do césio-137 no corpo duraram meses ou anos, na mente das vítimas eles não tiveram cura, e, especialmente para alguns, eles foram ainda mais agressivos. E a família Alves Ferreira foi uma das mais atingidas. Segundo Lourdes das Neves, o filho do meio, que tinha 14 anos na época do acidente sofre até hoje com a depressão que o acometeu depois da tragédia. “Ele também se tornou alcoólatra, já tentou suicídio três vezes. Desde o acidente foram só perdas para a gente, de todo jeito que você pensar.” 

Para algumas pessoas que viveram o pesadelo do césio, a busca por uma reparação mínima para as vítimas foi a forma que encontraram para superar a dor e as perdas. Suely Lina foi uma delas. A presidente da Associação das Vítimas do Césio-137 relata que a luta para assegurar os direitos dos atingidos pela radiação teve início logo após o acidente e continua até hoje. 

A primeira reivindicação foi a garantia de uma renda para as pessoas que perderam suas fontes de sustento. Segundo Suely, as pensões não demoraram a sair, o problema é que ao longo dos anos, os valores foram ficando defasados. Atualmente, a maioria das vítimas recebe, mensalmente, 940 reais. “A nossa maior luta é para voltar a ser de um salário mínimo. Porque antes a gente ganhava, também, medicamentos, mas foi cortado. Então, é muito pouco”, avalia. 

Além do auxílio estadual, um grupo de vítimas também recebe pensão do Governo Federal, mas, ainda assim, é insuficiente para suprir todas as necessidades. A mãe de Leide é uma das beneficiárias das duas pensões. Mostrando os contracheques, ela comprova que, juntando os dois benefícios, recebe, em valores líquidos, pouco mais de R$ 1.300,00. Segundo Lourdes das Neves, o dinheiro é usado praticamente todo para comprar a medicação que usa para os vários problemas de saúde que enfrenta.

“Eu tenho hipertensão, osteoporose, dores nos joelhos, no quadril, nas articulações, têm dias que não consigo cortar um tomate. Também tenho gastrite, dor no estômago. Minha vida sempre foi simples, antes do acidente, mas a gente tinha o básico, fazia um churrasquinho no fim de semana, agora eu dependo de ganhar cesta básica para me alimentar. Eu só queria ter um final de vida digno”, desabafa. 

De acordo com Suely Lina, essa rotina de dificuldades é compartilhada por quase todas as vítimas do acidente radioativo nesses 35 anos. Para ela, a luta diária pelos direitos dos radioacidentados é a sua motivação de vida. E mesmo passado tanto tempo do ocorrido, há muito a se conquistar, além de muitas perguntas sem resposta. “É dificuldade de toda ordem. Sofremos muito preconceito, esse ainda é um grande peso para nós. Tivemos que entrar na justiça para tentar conseguir reajuste da pensão. Tem muita gente que trabalhou no acidente que não foi reconhecida como vítima. É uma luta nossa, também. Sem falar nos problemas de saúde que a gente tem, mas não são reconhecidos como efeitos do césio. Nós não podemos doar sangue, mas ninguém explica porquê. É muita coisa.” 

Esquecimento

Essas também são as dores de Lourdes das Neves, que reclama do esquecimento das autoridades. A mulher, hoje com 64 anos, lembra que uma vez, a convite de uma equipe de reportagem, esteve no depósito dos rejeitos do césio-137, em Abadia de Goiás. No local, ela percebeu que a assistência aos radioacidentados estava muito aquém do que poderia ser. “Eu me senti o próprio lixo radioativo. Eu vi ali que o lixo é mais bem tratado que as vítimas”, resume. 

Mas mesmo com tantas marcas deixadas pelo acidente, Lourdes não se revolta. Segundo ela, muitas vezes tem a impressão de que nem foi ela que passou por toda essa tragédia e continua sobrevivendo. E acredita num propósito divino para ter sido parte dessa história dolorosa que ainda está em curso. “Acho que Deus tem um desígnio para mim, que eu tenho algo de bom a fazer. Só peço a ele força e sabedoria”, conclui.  E é assim que tem sido os dias dela nestes 35 anos. 

Na próxima reportagem será mostrado um pouco do legado deixado pelo acidente, por meio das atividades desenvolvidas no complexo que abriga o depósito dos rejeitos do césio-137. 

Fonte: Assembleia Legislativa de GO

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