Política
Escravidão nunca mais
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
Os versos acima foram extraídos do poema “Navio Negreiro”, escrito pelo poeta abolicionista baiano Castro Alves, em 1868. Em seu lirismo, o texto relembra o martírio sofrido por negros africanos, vítimas do tráfico transatlântico de escravos, no Brasil colônia. Promulgada quase duas décadas antes, em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz decretou medidas de repressão que acabaram culminando no fim dessa prática. Durante os mais de três séculos em que esteve em vigor, no país, estima-se que a atividade tenha sido responsável por trazer, da África, cerca de 11 milhões de escravos.
A lei que poria fim ao tráfico negreiro teria, no entanto, como precedente um movimento iniciado no Haiti, em 1791. Trata-se da Revolta de São Domingos (nome da antiga colônia francesa), que foi deflagrada na madrugada do dia 23 de agosto daquele ano e protagonizada por negros escravizados. A Revolução Haitiana, como ficaria reconhecida mais tarde, tornou o país não apenas independente e pioneiro na abolição do tráfico de escravos e da escravidão, como também a primeira república a ser governada por descendente de africanos.
Em homenagem às conquistas da insurreição haitiana, a Organização das Nações Unidas (ONU) institui, nesta data, o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A celebração vem sendo realizada, anualmente, desde 1997.
Histórico
O comércio de escravos foi tido como atividade legal, durante praticamente toda a colonização das Américas. As atividades exercidas pelos trabalhadores escravizados, principalmente os negros trazidos da África, foi fundamental para o desenvolvimento econômico das então colônias europeias. Ao longo desse período, a sua força de trabalho seria particularmente explorada nos setores agrícolas e na mineração.
Essa atividade só começaria a ser vista como ilegal e enquadrada como tráfico no final do século XVIII, em decorrência das sucessivas revoltas internas que passaram a acontecer de forma mais intensa nas colônias. O Haiti foi o caso mais bem-sucedido e se destacou como sendo o único país das Américas a ter a sua independência inteiramente protagonizada por negros.
No Brasil, esses avanços tardariam um pouco mais. Eles se dariam de forma lenta e gradual, fazendo do país o último das Américas a abolir a escravidão, em 1888. Diferente do Haiti, os negros, aqui, foram excluídos de praticamente todos esses processos. Não obstante isso, a resistência à escravidão esteve sempre presente e tinha na formação de quilombos a sua principal expressão.
A tentativa de se pôr fim ao tráfico de escravos, tida como o primeiro passo para a abolição da escravidão, contou, inicialmente, em terras brasileiras, com forte pressão da Inglaterra, que se industrializava e necessitava de mão de obra assalariada, com poder de compra, para escoar a sua produção. Em razão disso, em 1931, o país promulgou a Lei Feijó, proibindo a importação de escravos, no Brasil, e impondo sanções a todos os envolvidos com a atividade, a partir de então.
A nova legislação teve impacto importante no movimento abolicionista nacional, mas pouca efetividade real (daí a expressão “para inglês ver”). Na prática, o tráfico de escravos acabou crescendo. Somente após muita pressão internacional dos países da Europa, sobretudo os que tinham interesse na colonização da África, é que o Brasil assina a lei que acabaria por findar, em definitivo, com o tráfico negreiro, a Eusébio de Queiróz. Porém, ainda assim, a estimativa é de que de 1801 a 1867, cerca de 3,5 milhões de negros escravizados tenham desembarcado em terras brasileiras.
Daí até o fim da escravidão, que foi legalmente encerrada com a Lei Áurea, o país expediria ainda outras medidas, dentra as quais se destacaram a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários.
Mas, parte desses problemas continuam ainda a reverberar no tempo presente. O tráfico internacional de pessoas, a imposição de trabalhos forçados análogos à escravidão são mazelas que permanecem assombrando negros, negras e outros grupos sociais, no Brasil e no mundo. Estima-se que ainda existam hoje, no mundo, algo entre 21 milhões e 46 milhões de escravos.
Pela falta de reparação histórica, a população negra, de forma especial, também continua a ser vitimada por exclusões e opressões de diversas naturezas. Por essas razões, o debate em pauta, nesta data, segue sendo tanto atual quanto urgente.
Para falar um pouco mais sobre esse assunto, a Agência Assembleia de Notícias publica, na íntegra, a entrevista realizada com a professora e historiadora Janira Sodré, do Instituto Federal de Goiás (IFG).
O que mudou com a abolição do tráfico de escravos no Brasil?
A supressão do tráfico internacional de pessoas a serem escravizadas nas Américas, no Brasil, em 1831, e depois a proibição de se escravizar pessoas no território nacional, em 13 de maio de 1888, vem formalizar um processo de negação da escravidão como base da vida social e econômica e também formalizar processos de construção da liberdade e da emancipação da gente negra, que já vinha sendo produzida local e nacionalmente, nos quilombos, nas compras de autoalforria etc. Esse movimento é econômico e político, no seu aspecto mais amplo, mas também é um constructo da gente negra aqui. A abolição, a emancipação e a invenção da liberdade.
Por que os negros permaneceram sendo excluídos social e politicamente, mesmo após o fim da abolição?
No ano seguinte à abolição formal do Brasil, nós temos a Proclamação da República, em 1889. O que faltava para para proclamar a República era a abolição formal da escravidão. Foi uma República fundada sob os restos de uma sociedade escravocrata e colonial, onde não se permitiu um debate sobre o significado profundo dessa abolição. Vasta maioria, 70% das pessoas egressas do sistema de escravidão havia sido colocadas à margem do processos de escolarização e de inserção no mercado de trabalho, na atividade econômica formalizada. Essa abolição e a constituição da República, na sequência, não reconhecem as desvantagens e exclusões históricas a que essas pessoas estavam submetidas e não sugere processos de reparação em relação aos danos trazidos pela escravização desse amplo contingente de africanos e de seus descendentes, aqui. Com isso, a República continua reproduzindo padrões escravocratas, coloniais e de discriminação racial. Nós terminamos por ter o período mais longo de escravidão, com o maior contigente de pessoas escravizadas e uma nação que, quando se torna uma República, não discute a forma de reparar esses danos. Por isso, nós acabamos tendo uma replicação de padrões coloniais, que vão sendo reinventados e reiterados, numa reincidência, ou refundação, digamos, de um modelo racial que exclui e que bloqueia o acesso de negros e negras às oportunidades sociais, econômicas e políticas, no Brasil.
Sabemos que ainda há muita incompreensão sobre a escravidão no país e que isso vem trazendo consequências marcantes no Brasil atual. A senhora acredita que a celebração da data da ONU pode contribuir para reduzir o racismo no Brasil? Em que medida?
Há um desconhecimento sobre as formas e o impacto da escravidão. E esse desconhecimento, que também é programado, se traduz na invisibilidade das consequências da escravização para as pessoas negras no Brasil de hoje. Também há igualmente um desconhecimento quanto às resistências negras à escravidão, sobretudo. Por essa razão, especialmente, é que eu considero que seja, sim, importante celebrar a data, com a ONU, com outros agente e sujeitos, com os Estados Nacionais e a sociedade civil organizada, porque abrir o debate é a oportunidade de trazer a reivindicação para que se instaure políticas públicas que permitam a transformação desse padrão de racismo que se tem no Brasil. O debate é sempre necessário e ele, em grande medida, contribui para pautar a vida pública e para que a gente possa superar negacionismos ou a ideia de uma igualdade que é meramente jurídica ou apenas formal e não concreta, substantiva, efetiva, na vida das pessoas. O debate é muito importante e é ótimo que a ONU traga essa data do 23 de agosto como um debate sobre o tráfico internacional de pessoas para regimes e sistemas de escravidão. Porque, diga-se de passagem, houve uma abolição formal em 1888, no Brasil, mas ela não cessou, desde então e até o presente, o tráfico internacional de pessoas. Por isso, esse debate permanece ainda atual.
Em 30 de julho, foi celebrado a data mundial que trata do Combate ao Tráfico Humano, uma mazela que ainda afeta 40 milhões de pessoas no mundo, anualmente. A maioria delas é encaminhada para a prostituição ou a campos de trabalhos forçados análogos à escravidão. De que forma esse problema ainda segue afetando a população negra no Brasil e em Goiás?
Infelizmente Goiás continua sendo um dos estados da federação que é mais flagrado, denunciado e enquadrado na lei de crimes análogos à escravidão. A gente tem no território goiano flagrantes significativos, sobretudo no campo, na atividade econômica agrária relacionada às grandes propriedades rurais. Nós temos também Goiás como exportador de pessoas para o trabalho doméstico e sobretudo sexual, em outras partes do mundo, na Europa, na Ásia, como mostrou há quase uma década, a CPI do tráfico e da exploração sexual. Infelizmente Goiás continua sendo um território violento e escravocrata, seja para mão de obra no campo, seja exportando trabalhadores, nesse caso, sobretudo para a exploração de atividades sexuais, em regime de escravidão. Isso é dramático, é grave e é uma situação que afeta duramente os direitos humanos das pessoas atingidas, diretamente, mas também de todos nós, de forma geral. É um debate importante, no qual todas as instituições goianas deveriam se envolver. Em nossos levantamentos sobre o tema, temos focado na situação de mulheres negras, tanto cis, quanto trans. As mulheres negras são duramente atingidas quando nós falamos de tráfico internacional de pessoas e de trabalho sexual baseado na escravidão. Muitas delas são vítimas de sequestro e têm seus documentos extraviados.
*** Janira Sodré é doutoranda em História pela UnB e atua como professora da Coordenação de Filosofia e Ciências Humanas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG/Campus Goiânia). É ainda membro do Núcleo de Estudos em Gênero, Raça e Africanidades/NEGRA, também do IFG.
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