Política
Restauração da dignidade
“Eles me levaram para o porão de uma casa onde havia mais soldados e me torturaram e estupraram, diversas vezes. Eles me espancaram com correntes e armas. Me humilharam completamente, me tratando como um animal. Depois de cerca de seis meses dessa tortura e estupro, eles me deixaram para morrer abandonada”.
“Uma menina [de dez anos] me disse [em uma sessão] que foi mantida junto com outras crianças na mais completa escuridão, numa masmorra subterrânea, por 22 dias, para que seus pais aceitassem se alistar. Elas foram espancadas por quatro soldados usando armas e mangueiras e alimentadas com apenas um ovo cozido por dia. A água que receberam para beber era imunda. A menina viu um menino de cerca de sete anos ser torturado até morrer e seu corpo deixado para se decompor. O cheiro do cadáver podre foi outra forma de tortura para o resto das crianças presas”.
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Práticas de tortura ainda são bastante recorrentes em todas as regiões do Planeta, apesar de condenadas, internacionalmente, desde 1948, primeiro pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e, depois, por outras convenções e tratados posteriores. Elas afetam uma ampla gama de sujeitos e suas famílias, deixando traumas e sequelas que podem perdurar por anos e, às vezes, até mesmo por toda a vida. Dentre as vítimas, estão defensores de Direitos Humanos, detentos e ex-detentos, mulheres, crianças e adolescentes, idosos, refugiados, imigrantes, jornalistas, indígenas, deficientes, pessoas LGBTI, lideranças políticas e religiosas.
A cada ano, as Nações Unidas atendem mais de 50 mil vítimas de crimes dessa natureza. Além do acolhimento, esses atendimentos envolvem, ainda, um conjunto de serviços cujo foco é a plena restauração da dignidade dos torturados. As personagens citadas nos relatos de abertura dessa matéria são exemplos desse trabalho.
Para a Organização das Nações Unidas (ONU), tortura é o termo que define qualquer ato de violência praticado contra uma determinada pessoa, com a intenção de causar a ela grave dor ou sofrimento. A tortura se dá por meio de sanções não legítimas e que acabam por acarretar ao torturado danos físicos ou mentais.
Dentre as motivações de quem a pratica podem estar a busca forçada pela obtenção de informações ou confissões, a punição por ações cometidas (ainda que supostamente) ou a tentativa de se intimidar ou coagir a vítima com base em qualquer tipo de discriminação. Segundo a ONU, a realidade se torna ainda mais perversa quando executada, incitada, ou mesmo tolerada, tal como, por alguns agentes públicos pertencentes às forças de segurança dos países.
Como forma de combater esse mal e acolher os milhares de torturados espalhados pelo mundo, em 1997, as Nações Unidas proclamaram o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. Celebrada, anualmente, em 26 de junho, a data ratifica importantes conquistas históricas na área, sobretudo as alcançadas nos anos de 1980. Dentre essas está a instituição de um Fundo de Contribuições voluntárias que já premiou mais de 620 organizações e centros de reabilitação, nos 78 países em que está presente.
Somente em 2020, o Fundo concedeu 17 subsídios de emergência em razão da pandemia da covid-19. O recurso beneficiou mais de quatro mil sobreviventes de tortura em países como Bangladesh, Brasil, Egito, Gana, Grécia, Índia, Itália, Quênia, Líbano, México, Peru, República da Moldávia, Federação Russa, África do Sul, Ucrânia, Reino Unido e Estados Unidos da América.
Tortura no Brasil: da Ditadura aos dias atuais
“A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais. ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ me obrigou a segurar o seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período, fui estuprada duas vezes por ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidade”.
O depoimento acima reflete um caso de tortura ocorrido durante a ditadura militar brasileira. Ele se encontra reunido no livro “Brasil: Nunca Mais”, publicado em 1985 (ano que marca o fim do regime autoritário). Coordenada pelo arcebispo-emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns (falecido em 2016), a publicação teve como foco revelar a violência estatal praticada contra mais de 20 mil pessoas no País. A obra traduz o resultado da análise detalhada de mais de 700 processos abertos pelo Estado contra a população brasileira, ao longo do período ditatorial, que teve início após o golpe de 1964.
Esse tema foi profundamente debatido durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que esteve vigente de 2011 a 2014. Em página que reúne amplo acervo digital sobre o assunto, o Instituto Vladimir Herzog ressalta a importância do Colegiado e destaca seus principais resultados.
“Apesar de tardia, pois instituída praticamente 50 anos depois do golpe militar, a CNV foi importante porque, além de construir uma narrativa de memória e verdade sobre as violências e práticas repressivas do Estado durante a ditadura, ela também formulou 29 recomendações para que o Estado possa promover justiça com relação aos crimes ocorridos no período, reparar simbólica, financeira e psicologicamente as vítimas e reformar suas instituições aperfeiçoando a democracia e visando a não repetição das violações de direitos humanos que ocorreram no período”, avaliou o Instituto.
Antes, o Brasil já havia aprovado, em 1997, uma lei tipificando os crimes de tortura e prevendo para essas penas até 16 anos de reclusão. Em casos envolvendo agentes públicos, as detenções podem, ainda, ser aumentadas em até cinco anos.
Apesar de todas as conquistas citadas, práticas de tortura estão ainda longe de representarem apenas amargas lembranças de um passado ditatorial. Denúncias de violações dessa natureza continuam a expor as mazelas individuais e coletivas deixadas pelo exercício de políticas estatais repressivas.
Um dos principais levantamentos encontrados sobre o assunto foi apresentado, ainda em 2015, no próprio âmbito dos trabalhos da CNV. Com base em 455 julgamentos de tribunais coletados ao longo de três anos em todo o País, a pesquisa, que foi inicialmente divulgada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), revelou que, em 61% dos processos analisados, a tortura havia sido praticada por agentes públicos (a maioria homens), em locais como cadeias, manicômios e casas de detenção. Em 33% dos casos o crime foi executado em ambiente domiciliar, o que inclui a invasão de residência por aparato policial. Outra parcela igualmente significativa das ocorrências se deu em vias públicas (31%).
Em depoimento dado em 2019, que acabou por desencadear uma desavença política com o atual Governo federal, a ex-presidente do Chile e, hoje, Alta Comissária ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, demonstrou a preocupação profunda da entidade com o agravamento dessa situação no País. Isso porque somente nos seis primeiros meses daquele ano, as Secretarias de Segurança Pública dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro haviam notificado mais de 1.300 mortes de suspeitos por suas respectivas polícias. Em relação ao mesmo período de 2018, esse número representava, em conjunto, um aumento de 15% nos casos.
Bachelet lembrou, ainda, que negros, indígenas, favelados e moradores de periferias, trabalhadores sem-terra, defensores dos direitos humanos e ambientalistas costumam estar entre os principais alvos dessa violência estatal. Segundo a comissária da ONU, desde 2002, o Brasil ocupa lugar de destaque entre os países que mais perseguem e executam pessoas com perfis dessas naturezas.
Assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, Bachelet também foi vítima da tortura durante a ditadura militar no Chile. Na época, ela tinha entre 22 e 23 anos. Antes, seu pai, o general Alberto Bachelet, havia sido preso e torturado até a morte por seus próprios subordinados. Dados oficiais fornecidos pela Justiça chilena estimam que cerca de 3 mil pessoas tenham sido mortas e 38 mil torturadas, durante a ditadura de Pinochet (1973-1990).
Situação em Goiás
Em Goiás, também há quem compartilhe de trajetória semelhante às das ex-presidentas citadas. Esse é o caso, por exemplo, do ex-prefeito de Goiânia, Pedro Wilson (PT), que, em 1971, foi preso e torturado por agentes da ditadura militar no estado. Ele, que já ocupou, igualmente, o cargo de deputado federal, por três mandatos, hoje integra o Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno, onde atua desde a sua fundação, em 2016.
Pedro Wilson comenta que a entidade foi criada justamente para se promover justiça a partir do combate a essas violências e arbitrariedades praticadas contra a população, sobretudo aquelas que são socialmente mais marginalizadas. “A tortura é uma barbárie que herdamos do passado, mas que estamos constantemente renovando, sobretudo, agora. Na época da ditadura, ela era o principal mecanismo usado para se obter confissões. Em razão delas, muitos continuam ainda hoje desaparecidos. Outros tantos foram mortos em acidentes forjados para encobrir verdadeiros assassinatos, cujas autorias jamais foram reveladas, mesmo com a aprovação de legislação amplamente favorável após a redemocratização”, sublinhou.
Como vítima do regime, o ex-prefeito destaca que uma das principais ferramentas legais usadas para se justificar as prisões, as torturas, as execuções e os desaparecimentos durante a ditadura militar foi a chamada Lei de Segurança Nacional (LSN), ainda hoje vigente.
Pouco usada desde a redemocratização, a LSN, cuja versão mais recente foi promulgada em 1983, volta a ser destaque na administração de Jair Bolsonaro (sem partido). Entre 2019 e 2020, foram abertos quase 80 inquéritos com base no tema. Muitos deles foram considerados polêmicos, por ensejarem aparentes censuras contra opiniões contrárias ao Governo.
No início de maio, a Câmara Federal aprovou projeto revogando a legislação. A matéria entrou em discussão no Senado, nessa sexta, 25 de junho.
Segundo Wilson, ao longo de seus cinco anos de atuação, o Comitê tem acompanhado e denunciado principalmente violências e injustiças praticadas por agentes de Estado contra moradores de rua e de periferia, ocupações urbanas e rurais e militantes de movimentos sociais.
Um exemplo é o que revela o desaparecimento e assassinato de jovens goianos moradores de comunidades periféricas. Sobre isso, o ex-prefeito afirma que, embora as justificativas apontem sempre para supostos envolvimentos em confrontos com a polícia, a maior parte destes crimes permanecem, por falta de provas, sem a devida investigação por parte das perícias técnicas.
“Nós temos acompanhado, hoje, em Goiânia, por exemplo, uns cinco casos de jovens desaparecidos e que, provavelmente, foram envolvidos nessas circunstâncias. Tem, ainda, outra situação terrível, que são as ameaças que as pessoas sofrem quando decidem procurar por seus familiares desaparecidos. Há casos, inclusive, de desaparecimentos sequenciais, envolvendo as próprias pessoas que foram buscar informações sobre o paradeiro de outras”, frisou.
Dentro desse contexto, ele cita, especialmente, a luta protagonizada pelo movimento das Mães de Maio do Cerrado. Em atuação oficial no estado desde 2019, o coletivo tem, entre seus integrantes, as mães dos dez adolescentes mortos em incêndio ocorrido no Centro de Internação Provisória (CIP) de Goiânia, em maio de 2018. “Direitos Humanos não é proteger bandido. É proteger as pessoas, fazendo com que os crimes contra elas praticados sejam devidamente julgados perante a lei”, arrematou.
O Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em Goiás foi especialmente criado, em 2017, para atender cada uma dessas reivindicações. Seu trabalho tem sido atualmente voltado para a defesa da população carcerária, que se destaca, ainda hoje, como uma das principais vítimas das diversas violências praticadas por agentes públicos.
Em inspeções realizadas em novembro de 2020, em dois presídios do estado, um localizado em Aparecida de Goiânia e outro em Formosa, o Comitê identificou uma série de irregularidades no tratamento dado aos internos. O Comitê constatou que os internos estavam sendo submetidos, por exemplo, a procedimentos de segurança e disciplina que não contavam com o devido respaldo legal.
Em relatório produzido a partir das visitas, foram notificadas, ainda, a falta de oferta de itens básicos de higiene nas celas, a imposição de restrições alimentares, além do problema da superlotação.
Para o advogado Gilles Gomes, presidente da entidade, todos esses fatores, que comprometem a integridade física dos presos e que se agravam diante da crise sanitária provocada pela pandemia de covid-19, são consideradas formas de tortura que ele qualifica como “contemporâneas”. “Hoje, por exemplo, no contexto dos presídios, o STJ [Supremo Tribunal de Justiça] fala que, pena cumprida em condições inumanas ou degradantes, deve ser contada em dobro. Por isso, a atuação do Comitê é ainda mais relevante, porque temos logrado produzir provas concretas dessas situações”, complementou.
O Comitê integra o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à tortura e conta com a participação de membros da Defensoria Pública (DP-GO), do Ministério Público (MP-GO), do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) e outras entidades, incluindo, igualmente, organizações da sociedade civil. A Comissão de Direitos Humanos do Legislativo goiano também possui assento no colegiado.
Discussões na Alego
Para a deputada Lêda Borges (PSDB), o combate à tortura começa com a proibição de homenagens a agentes que tenham praticado, a qualquer momento, crimes dessa natureza, no estado de Goiás. O projeto de nº 5084/19, apresentado por ela em agosto de 2019, caminha justamente nessa direção e aguarda, agora, as duas fases de votação do Plenário. Antes, recebeu a aprovação de pareceres favoráveis das Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e de Segurança Pública da Casa.
A parlamentar informa que a medida visa atender uma das 29 recomendações da CNV, que foram inseridas no relatório entregue em 2014. “Desde a elaboração do mencionado documento, diversos estados passaram a reivindicar a retirada de nomes que estão relacionados à punição de autores de crimes cometidos durante o regime militar. A exemplo disso, temos o Mato Grosso, a Bahia e Sergipe”, afirmou.
Lêda lembra, ainda, que, com a aprovação da norma, o Governo estadual ficará obrigado a substituir todos os nomes de logradouros e prédios públicos cujas homenagens tenham sido indevidamente prestadas. “Em pleno século 21, conhecendo a história do Brasil e as atrocidades cometidas durante o regime militar, não podemos aceitar que pessoas condenadas por tortura, exploração do trabalho escravo e/ou violação de direitos humanos sejam homenageadas”, reivindicou.
Em 2017, a Casa aprovou o projeto da Governadoria que instituiu o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (Lei nº 19.684/17).
Para a deputada Delegada Adriana Accorsi (PT), que, na Legislatura anterior, presidiu a Comissão de Segurança Pública da Alego, onde hoje atua como vice-presidente, a instituição do Comitê indicou um grande avanço no combate à tortura no estado de Goiás. “Eu acredito que a legislação brasileira é bastante rigorosa e eficiente. O que precisa, realmente, é que esses casos sejam investigados com rigor e punidos pela Justiça como a lei preconiza. Por isso a criação desses organismos é tão importante: Porque eles podem fiscalizar, denunciar e cobrar o efetivo exercício das leis”, pontuou.
A deputada destacou, ainda, que a tortura não se restringe somente às forças institucionais, mas que também precisa ser combatida no interior da própria sociedade civil, onde crianças e mulheres costumam ser as principais vítimas. Ela lembrou o caso da menina Lucélia, de 12 anos, que foi encontrada amordaçada e acorrentada na área de serviço do apartamento da ex-empresária, Sílvia Calabresi, no Setor Marista, bairro nobre de Goiânia. E citou outro caso, mais recente, de pai que foi preso em Goiânia por suspeita de praticar tortura contra o próprio filho, uma criança de oito anos.
As investigações sobre o crime praticado contra Lucélia ganharam repercussão internacional, em 2008, e foram conduzidas pela própria deputada, que, na época, coordenava a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Goiás (DPCA).
Em anos anteriores, tramitaram na Alego três processos legislativos contendo denúncias de casos de tortura por parte da Polícia Militar do Estado de Goiás. Duas delas foram registradas no município de Minaçu e apresentadas, respectivamente, pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-GO), em 2005, e pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em 2003. A outra foi notificada pela Câmara de Vereadores do Distrito Federal, em 2004, e envolvia uma vítima da cidade de Valparaíso de Goiás.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Casa, deputado Rafael Gouveia (Progressistas), disse acreditar na força de ações integradas para combater esses tratamentos degradantes. Ele, que assumiu recentemente o cargo, afirmou já ter solicitado à área jurídica da Alego um levantamento aprofundado sobre casos de tortura em Goiás.
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