Política
Em defesa da história
Em outubro do ao passado, um dos locais mais simbólicos e mais frequentados pelos goianos foi declarado como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado: os pit-dogs. O reconhecimento desses quiosques instalados em ruas e praças de praticamente todas as cidades de Goiás, que com um mínimo de equipamentos produzem sanduíches, sucos, cremes e outras iguarias, aconteceu com pompa e circunstância, com direito a solenidade no Palácio das Esmeraldas para a sanção da lei e diversas reportagens em jornais, rádios, TVs e sites.
O processo que originou a lei é de autoria da deputada Delegada Adriana Accorsi (PT), que na justificativa da proposta anotou: “São comércios que estão há décadas no mesmo ponto e já se incorporaram à paisagem, aos hábitos dos goianienses. O pit-dog faz parte de nossa constituição cultural”.
E quem é goiano sabe bem o quanto os pit-dogs estão presentes nos hábitos, mas também na nossa memória afetiva: já existem há quase 60 anos. E por serem estabelecimentos que não fazem distinção de classe social, caíram no gosto de todos e geraram esse vínculo com a população goiana.
Quiosques de lanche existem em todas as cidades, mas não na quantidade e tão incorporados à cultura local, como em Goiânia.
Reconhecimento
Assim como os pit-dogs, outros projetos tramitam na Assembleia Legislativa propondo que locais, eventos ou manifestações populares sejam reconhecidos como patrimônio histórico e cultural, como o processo 5699/20, de autoria do deputado Cláudio Meirelles (PTC), que concede o título à Feira Hippie.
Outra proposta no mesmo sentido vem do deputado Gustavo Sebba (PSDB), que sugere que as Cavalhadas e a Contradança de Santa Cruz de Goiás sejam declaradas como patrimônio histórico e cultural goiano.
Apesar de parecerem muito diferentes, os pit-dogs, as Cavalhadas e a Feira Hippie, objetos das proposições citadas como exemplo, têm muito em comum. Nelas os goianos se reconhecem. Elas fazem parte da nossa identidade como povo, da nossa memória, das nossas origens.
Muitas vezes, enxergamos nessas tradições, nossos antepassados. Isso tudo integra o “patrimônio cultural” de um povo. E reconhecer esses bens como tais é preservar, para garantir que as futuras gerações também possam ter o direito de conhecê-las.
Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Goiás, Allyson Cabral explica que os monumentos, as cidades históricas, as paisagens, as festas e as tradições são importantes heranças, porque compõem a identidade cultural e histórica dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. “O patrimônio cultural é o conjunto de manifestações, realizações e representações de um povo e de uma comunidade. Ele está presente em todos os lugares e atividades: nas ruas, nas casas, nas danças e músicas, nas artes, nos museus e escolas, igrejas e praças. Nos modos de fazer, criar e trabalhar. Nos livros, na poesia, nas brincadeiras, nos cultos religiosos.”
Muita coisa, mas muita gente desconhece o valor disso tudo. Esse conjunto de bens pode ser dividido em patrimônio cultural tangível, quando é constituído por bens materiais, e intangível, aquele formado por bens imateriais, como as lendas, os rituais e os costumes.
O patrimônio tangível divide-se ainda em: bens imóveis, que são os monumentos, edifícios, sítios arqueológicos, elementos naturais que tenham significado cultural, e os bens móveis, que são os mobiliários, utensílios, obras de arte, documentos, vestuários, etc.
A relevância do tema já vem sido reconhecida há algum tempo, tanto que a Constituição Federal de 1988, trouxe no artigo 216 o conceito de patrimônio cultural.
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I– as formas de expressão;
II– os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Proteção e promoção
E existe até um órgão para cuidar do assunto. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é o responsável pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. E também responde pela proteção e promoção dos bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Mas cabe também aos estados e municípios a preservação.
Para dar ainda mais visibilidade à importante tarefa de cuidar do nosso patrimônio, no dia 17 de agosto de 1998, quando o primeiro presidente do Iphan completaria 100 anos, foi criado o Dia Nacional do Patrimônio Histórico. O advogado, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade foi um ardoroso defensor da memória brasileira e, junto com outros intelectuais, como Mário de Andrade e Lúcio Costa, consolidaram a fundação, em 1937, do Serviço Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que deu origem ao Iphan.
O Iphan possui a tutela de mais de 45 mil bens imóveis tombados, inseridos em 86 conjuntos urbanos tombados. A lista do Instituto consta também como tombados um sítio paleontológico, 77 conjuntos arquitetônicos, 33 conjuntos rurais, 449 edificações, 393 edificações e seus acervos, 13 jardins e parques históricos, um quilombo, 30 ruínas, cinco sítios arqueológicos, nove terreiros, 24 patrimônios naturais, 29 acervos, 63 bens móveis e integrados e 45 equipamentos urbanos.
Em Goiânia, é tombado pelo Iphan o Conjunto Arquitetônico Art Déco e Urbanístico de Goiânia, que inclui parte do traçado urbano dos núcleos pioneiros da capital, mais 21 edifícios e monumentos públicos, concentrados no centro da cidade e no núcleo pioneiro de Campinas. São eles: Conjunto de edifícios e demais elementos que formam a Praça Cívica: Coreto, Fontes Luminosas, Fórum e Tribunal de Justiça, Residência de Pedro Ludovico (atual Museu Pedro Ludovico Teixeira), Departamento Estadual de Informação (atual Museu Zoroastro Artiaga), Obeliscos com luminárias, Palácio das Esmeraldas, Delegacia Fiscal (atual Sede da Superintendência do Iphan em Goiás), Antiga Chefatura da Polícia, Secretaria-Geral (atual Centro Cultural Marieta Telles), Torre do Relógio e Tribunal Regional Eleitoral.
Além desses, outros edifícios no centro da cidade e no bairro de Campinas: Liceu de Goiânia, Grande Hotel, Teatro Goiânia, Escola Técnica de Goiânia (atual IFG), Estação Ferroviária, Trampolim e Mureta do Lago das Rosas, Palace Hotel (atual Biblioteca Municipal Cora Coralina), Subprefeitura e Fórum de Campinas.
A proteção dos bens pode ser feita ainda nas esferas estadual e municipal. A Secretaria de Estado de Cultura conta mais de 70 bens tombados em Goiás, como a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Pirenópolis e o acervo arquitetônico e paisagístico da cidade de Pilar. Já a prefeitura de Goiânia tem uma lista de 63 bens classificados como preservados ou tombados.
Muito a ser feito
Apesar de termos uma parte do nosso patrimônio tombado, muito ainda falta ser feito para que a preservação de bens seja valorizada e tenha sua importância reconhecida. Não é raro assistirmos a cenas de destruição de bens de grande valor histórico.
Em Goiânia, na semana passada, uma casa antiga, com características modernistas, que ficava na Rua 84, no Setor Sul, foi demolida para a instalação de uma garagem. O Ministério Público do Estado já havia solicitado ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental uma avaliação da importância histórica do imóvel e, se fosse o caso, procedesse o tombamento. Mas não houve tempo, a residência foi ao chão, antes mesmo da análise pelo Conselho. O imóvel não é o único. A grande maioria das edificações particulares do núcleo histórico de Goiânia, praticamente, não existe mais.
A urbanista e assessora de relações institucionais do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-GO), Maria Ester de Souza, afirma que faltam políticas públicas para a preservação, a começar por uma legislação específica. “Nós não temos uma lei municipal de defesa do patrimônio. E isso leva a diversas situações, que dificultam a preservação.”
Maria Ester, que é professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e presidente da Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente, acredita que a falta de legislação é que permite, por exemplo, que os interesses da especulação imobiliária prevaleçam sobre o interesse da preservação, levando à venda, à demolição ou descaracterização dos imóveis históricos.
“Cidades europeias, Barcelona, por exemplo, conseguem preservar. Lá não tem especulação imobiliária? Tem. Eu acredito que é possível conciliar preservação e especulação. O que falta é a letra da lei, que vai determinar diretrizes para a preservação, os benefícios para o proprietário, como a isenção do IPTU para esses imóveis”, analisa a arquiteta.
Educação e preservação
Outro ponto abordado pela professora, que também poderia ser contemplado com uma lei que tratasse do assunto, é com relação à educação para preservação. Ela entende que a educação básica não ensina sobre a necessidade de se conservar e, mesmo nas escolas de arquitetura, esse ensino é insuficiente. Essa ausência contribui para a formação de um senso comum de que só o que é muito antigo é que merece ser preservado.
Ela lembra que Goiânia foi fundada sob a égide da modernidade, numa época de mudanças de paradigmas, inclusive na arquitetura. Dessa forma, prédios como o Palácio das Esmeraldas, a sede da Assembleia Legislativa, entre tantos outros, foram projetados com esses ideais. E que são registros de um tempo. Mas ela percebe que não há esse reconhecimento.
O mesmo artigo 261 da Carta Magna, que estabelece a constituição do patrimônio cultural brasileiro, também determina que a preservação do patrimônio histórico e cultural é dever de cada cidadão.
“§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”.
O superintendente do Iphan em Goiás, Allyson Cabral, reforça que, além das instituições voltadas à preservação do patrimônio cultural brasileiro, todo cidadão deve dar a sua parcela de contribuição. A melhor maneira de ajudar na preservação e o primeiro passo neste processo é conhecer o patrimônio, informar-se sobre os bens protegidos, apropriar-se da riqueza cultural que constitui o patrimônio cultural brasileiro.
“Todo cidadão e cidadã que identificar alguma situação de risco ou dano a um bem cultural, deve comunicar o fato à Superintendência do Iphan do estado no qual se localiza o bem tombado, para que o órgão adote as providências cabíveis para o caso”, diz Allysson.
Mas apesar de constar da Constituição Federal, o conhecimento e o reconhecimento desse patrimônio ainda é insípido, conforme já diagnosticado pela professora Maria Ester. Em parte o superintendente do Iphan concorda, mas diz que o órgão vem trabalhando para mudar esse cenário. “A maneira mais efetiva de valorização e preservação dos patrimônios históricos e culturais é levando o conhecimento à população sobre a importância deles para as gerações atuais e futuras. O Iphan busca formas de implementar uma postura educativa em todas as suas ações institucionais, por meio de atividades voltadas à educação patrimonial”.
Circuito Literário
Allyson Cabral anuncia uma das iniciativas para marcar o 17 de agosto: o lançamento do Circuito Literário Iphan Goiás nos Municípios. “O Iphan em Goiás vai doar aos prefeitos dos 246 municípios goianos publicações para que elas façam parte das bibliotecas municipais. Por meio dessas obras, educadores, alunos e sociedade em geral terão acesso a um conteúdo especializado, estudos recentes, novas propostas acadêmicas e educativas, projetos de restauração, mídias com registro de nossa cultura e muito mais.”
Sem dúvidas, é um bom começo. A torcida é para que mais ações como essa aconteçam, não só na data festiva, mas que seja um esforço constante no sentido de mostrar o quanto é importante preservar e valorizar o passado para o resgate e a compreensão de nossa história, para o sentimento de pertencimento e orgulho, itens essenciais para a construção de uma sociedade melhor.
Você precisa estar logado para postar um comentário Entrar