Entretenimento
“É preciso acreditar que 2022 vai chegar”: dificuldades de símbolos do Carnaval
Correr ao ateliê para os últimos retoques na fantasia. Conferir a limpeza da bandeira, que tem que chegar imaculada à Marquês de Sapucaí. Ensaiar mais uma vez o bailado, e outra, e uma mais. Dar conta das entrevistas solicitadas por jornalistas do Brasil e do mundo. Fevereiro é assim já há 30 anos para Selminha Sorriso, a multivitoriosa primeira porta-bandeira da premiada escola de samba Beija-Flor de Nilópolis. Só que, em 2021, a necessidade de se resguardar do coronavírus fez a passista usar uma máscara nada carnavalesca, sem brilhos nem lantejoulas.
Sorridente, Selma de Mattos Rocha não ganhou a alcunha de Selminha Sorriso à toa. É chamada assim desde criança, quando desfilava na ala mirim da pequena Unidos de Lucas. Agora, para além de voltar a rodopiar na avenida, ela sonha com a reconquista da liberdade. “Quando puder, vou ser a primeira a tirar a máscara e mostrar meu sorriso. Mas agora tenho um vazio muito grande no meu peito”, lastima.
Até poder se livrar da proteção facial, conforma-se com a vida sem lantejoulas, penas e plumas: participa de lives (já foram mais de 100 desde 2020, sempre com foco no ofício), planeja o 4º Encontro Nacional de Mestre-Salas e Porta-Bandeiras, que será dia 27, na casa de shows Imperator, e mantém sua rotina suada de exercícios físicos. E tenta se equilibrar financeiramente a despeito das perdas de receita com o cancelamento do Carnaval — determinado diante do descontrole da pandemia no Rio.
São mais de 17,9 mil mortos na capital (praticamente o mesmo número verificado no município de São Paulo, que tem o dobro de habitantes) e em torno de 3,6% da população vacinada contra o coronavírus.
Para o folião mais devotado, começar o ano sem pular nas ruas e na Sapucaí é motivo de lamentos. As redes sociais estão cheias — quanto mais árida a vida, dizem, maior é a sede pela diversão. É maior ainda depois de um ano como 2020. Mas para quem vive do carnaval, o luto ainda está em elaboração e alcança outras dimensões.
“Estou oscilando. Minha ficha caiu quando marcaram uma gravação para o dia 4 de fevereiro, que, se tudo estivesse normal, seria o último ensaio na quadra da Beija-Flor antes do carnaval. Aí pensei: é real, não vai ter”, relembra Selminha.
“Se agora fosse carnaval, eu estaria naquele desespero para cumprir a agenda. Nesse período, sou celebridade. Mestre-sala e porta-bandeira são a cara da escola, como o mestre de bateria, a rainha. São dias em que eu saio com várias bolsas no carro, com 2, 3 vestidos para trocar, sempre olhando se a bandeira está limpa, e também sempre aprimorando a coreografia”, diz Selminha, que mora na Vila Valqueire, subúrbio da zona oeste, com o filho, de 20 anos.
A aguardada comemoração de seus 50 anos de idade, dos 25 de Beija-Flor, dos 30 com o parceiro de dança Claudinho, todas as marcas de 2020, que encheriam de admiradores a quadra de Nilópolis, na Baixada Fluminense, foram abortadas pela urgência do distanciamento social (o aniversário não foi cancelado, acabou sendo uma festa on-line). Otimista, Selminha, porta-bandeira desde 1989, cultivou por meses a vã esperança de que 2021 seria diferente.
“No meio de 2020, eu achava que agora ia ter carnaval, que ia dar tempo, que tudo iria andar, que o Brasil ia conseguir vacinar”, rememora a 1º sargento do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio, alocada no Palácio Guanabara, sede do governo fluminense. “Eu fiquei chocada quando isso mudou. Mas entendi que era o melhor. É a consciência do sambista. De quem ama essa manifestação, que é nossa prova de resistência, mas compreende que o momento é de cuidar das vidas. Cuidar dos nossos e mesmo de quem não conhecemos. É preciso acreditar que 2022 vai chegar. Só que depende muito da gente”.
Elemento fundamental numa escola de samba, e um dos nove quesitos avaliados na competição anual do Sambódromo, o casal de mestre-sala e porta-bandeira tem como missão apresentar o estandarte ao público e aos julgadores, vindo logo no início. Vestidos como nobres, eles guardam o símbolo maior de cada agremiação, um tecido de 1,20 m por 90 cm sacralizado pelo carnaval.
A figura masculina é a de proteção e reverência; a feminina, de graciosidade e leveza – ainda que o traje e o pavilhão possam chegar a somar até metade do que pesa a própria porta-bandeira. Cada gesto é meticulosamente escrutinado pelo júri de bailarinos e coreógrafos. Dentre os cerca de 3 mil componentes que evoluem na passarela, eles fazem parte de uma minoria que, pelas regras, rígidas, não podem sambar.
Viver do Carnaval
Ano após ano, a performance de Selminha e Claudinho, que começaram a trabalhar juntos no hoje longínquo 1992, na tradicional Estácio de Sá, campeã daquele ano, segue nota 10. Não basta não errar (não escorregar, não deixar elemento cênico cair, não dar as costas um ao outro), é preciso demonstrar total sintonia, encantar quem os assiste. E, para tal, eles têm apenas 1 minuto e meio diante das cabines onde ficam os jurados.
São parcos 800 metros de passarela, pouco mais de uma hora de desfile, que passa como um transe. É um jogo que se reinicia a cada carnaval, e o preparo de Selminha para a noite mais importante do ano incluía, antes da pandemia, nove modalidades esportivas, como crossfit, muay thai, natação e futevôlei, além de jazz. As restrições na academia por conta da covid-19 não a deixaram parada. As fotos da malhação compartilhadas no Instagram estão de prova.
Você viu?
Embora tenha conseguido se preservar da covid-19, o que, num cenário sanitário caótico já é razão para ostentar seu sorriso, o ano de 2020 foi tudo menos fácil para Selma; A quadra de Nilópolis (como as demais) fechou, e demorou para reabrir. As viagens internacionais para divulgar sua arte foram canceladas. O salário (“ajuda de custo”) que recebe da Beija-Flor, um privilégio de que gozam apenas as figuras centrais da estrutura das escolas, teve de ser reduzido pela direção. A renda com as apresentações que faz por fora despencou.
“Sou bastante solicitada, e gosto muito de atender. Sou fácil de lidar. A renda aumenta no carnaval, meu cachê é legal. Faço apresentações, presença vip em eventos, dou workshops em outros estados e no exterior. Em 2019, fui para Portugal e Cabo Verde. Falamos sobre a dança do mestre-sala e da porta-bandeira, damos aulas práticas… É um extra que você não conseguiria só com o salário”, enumera.
“A escola ajuda quem não tem alternativa para sobreviver. Mas é complicado, é muita gente. Como pagar os profissionais se não entra R$ 1?”, pondera. “As escolas não tiveram de onde tirar, não houve apoio do poder público por 4 anos, e a iniciativa privada recuou. Somos profissionais da festa. Mas pelo menos conseguimos nos reinventar nas lives. Chamei mestre-salas e porta-bandeiras que não atuam mais para falar para os meus seguidores, jornalistas, escritores. Está sendo um grande aprendizado, para mim e para todo mundo”.
Hoje com 45 anos, outra estrela das mais brilhantes do carnaval, de uma linhagem que vem das lendárias Vilma, da Portela, de epíteto autoexplicativo Cisne da Passarela, Neide, da Mangueira, e Maria Helena, da Imperatriz Leopoldinense, Lucinha Nobre estreou como porta-bandeira mirim em 1984, aos 8, na Alegria da Passarela. Era o simbólico ano da inauguração do Sambódromo, uma conquista sem par dos sambistas após décadas de espaços improvisados para os desfiles.
Com 16 anos, Lucinha já era a primeira porta-bandeira da Mocidade Independente de Padre Miguel, o que é muita, muita coisa. Mais tarde, carregaria também os pavilhões da Unidos da Tijuca, Porto da Pedra e Inocentes de Belford Roxo. Há três anos, a irmã do compositor e cantor Dudu Nobre está de volta à Portela, onde já desfilara entre 2010 e 2012. Ao contrário da esperançosa Selminha, Lucinha, que é hostess de um dos melhores restaurantes de Ipanema, o Zazá Bistrô Tropical, já esperava por este fevereiro adverso.
Está resignada, embora preocupada com quem não tem de onde tirar recursos para o básico. “Eu passei 2020 tentando não pensar em carnaval. É muito triste saber que não vai ter, que muita gente ficou sem renda. Tem família que a mãe tem uma barraca, o pai trabalha com carnaval, um está no barracão, outro, na quadra. O cancelamento impacta diretamente”, lamenta.
“Conheço pessoas que moravam no Rio e tiveram que voltar para as suas cidades natais, por exemplo, porque não conseguiram se manter. Felizmente, a gente conseguiu fazer algumas ações solidárias para ajudar. É uma pena que não haja uma organização para que a gente pudesse estar mais amparado”, comenta Lucinha, que conseguiu segurar as contas em 2020 porque tinha poupado para ir à Disney numa viagem familiar.
Foi tudo muito rápido. Passado o desfile de fevereiro, ela embarcou com seu mestre-sala Marlon Lamar para o carnaval da cidade gaúcha de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, cujas escolas há muitos anos absorvem profissionais cariocas (Selminha e Claudinho também desfilam por lá). Na volta, perdeu o emprego no restaurante, que fechou, passou por uma renovação e só reabriu mês passado.
“Foi chocante. Passei por um turbilhão emocional. Imagina uma pessoa que vinha superocupada, me dividindo entre o carnaval e o restaurante, e, de repente, não tinha nada. Eu precisei de uma grande base emocional para passar por isso. Cheguei de Uruguaiana já no meio da pandemia, no mesmo dia em que o restaurante fechou. Assinei a demissão e fui para o isolamento com minha mãe e meu filho”, conta Lucinha, que mora em Vargem Grande, bairro da zona oeste carioca.
A apresentação de lives, o trabalho como produtora do irmão e eventuais aulas de dança on-line tomaram o lugar das viagens de trabalho desmarcadas pela pandemia. Eram cinco, para o Japão, Suíça, Alemanha, Cabo Verde e Estados Unidos. Este mês, outra receita que se foi é a de comentarista dos desfiles da Série A (o segundo grupo das escolas de samba) pela TV Globo.
“Felizmente eu tinha esse dinheiro guardado para ir para a Disney; por isso eu consegui viver. Agora, não tenho mais nada, tendo que recomeçar do zero”, diz Lucinha, que ainda vive um drama familiar: um tio querido, que morava em Curitiba, acaba de morrer de câncer. Durante o segundo semestre de 2020, ela se deslocou até a cidade para assisti-lo.
“De certa forma, me senti grata por poder estar com ele. Mesmo triste por não ter carnaval, sei que Deus foi generoso comigo porque se tivéssemos carnaval eu não poderia estar com minha família em Curitiba para essa despedida”, reconhece. “Todos os meus trabalhos têm relação com público, então, na pandemia, fiquei praticamente todo o tempo guardada, cuidando da minha mãe. Nunca tenho tempo para a família.”
Os desfiles das escolas de samba do Rio foram adiados em definitivo somente no mês passado pelo prefeito Eduardo Paes (DEM), um entusiasta da festa, folião portelense que volta e meia se remete à escola em falas públicas. Até então, cogitava-se realizar as apresentações na Sapucaí em julho. Diante da óbvia impossibilidade de se vacinar toda a população em poucos meses e de as escolas e o próprio poder público se prepararem a contento, Paes declarou que não via sentido em cogitar a transferência para o inverno.
Não foi surpresa para Lucinha. “Eu estava ciente de que não ia ter carnaval em fevereiro desde sempre. Nem eu iria. Isso nunca foi a minha questão. Eu estava defendendo o carnaval de julho. Mas quando a gente viu como estava a vacinação, ficou claro que não ia dar. O mais importante é ter segurança”, defende.
Catártica. É como ela imagina a festa em 2022. “Vai ser um êxtase completo”, torce. “Eu me preparei emocionalmente para não chegar a fevereiro nesse vazio, nessa depressão, como vários amigos estão. A gente tem que ter resiliência, esperar o momento em que tudo vai voltar. É preciso estar conformado.”
Você precisa estar logado para postar um comentário Entrar