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Política

Celebração da resistência

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Eles já povoavam esse amplo território, muito antes da chegada dos colonizadores portugueses. Somavam, a princípio, cerca de três milhões de indivíduos. Mas doenças, perseguições e maus tratos acabaram por reduzir drasticamente esse contingente populacional. Em meados do século passado, sua população girava em torno de apenas 70 mil  pessoas. 

Em razão desses traumas, acreditou-se, por muito tempo, que o desaparecimento deles seria historicamente inevitável. Essa realidade foi até deliberadamente buscada, em alguns momentos, com a implantação de políticas públicas voltadas, especialmente, à aculturação e à expropriação territorial. O apelo, na época, era para que essas populações pudessem, assim, ser integradas à chamada comunhão nacional.

Hoje, mais de cinco séculos após o início da colonização portuguesa no Brasil, eles, os chamados povos indígenas brasileiros, dão provas claras de que a sua resistência não foi em vão. Quase extintos no passado, eles somam agora uma população que se recupera, a cada década, e que já supera os 800 mil indivíduos. Juntos, dão corpo e voz, respectivamente, a uma diversidade cultural que permanece imensa e que é conformada, atualmente, por 305 etnias e 274 línguas diferentes. 

Para exaltar a luta, a sabedoria e o legado dessas populações originárias, que se fazem presentes não só no Brasil, mas também em mais 89 países, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) instituiu, em 1994, o Dia Internacional dos Povos Indígenas. A data é celebrada anualmente neste 9 de agosto. 

“Não deixar ninguém para trás: os povos indígenas e a convocação de um novo contrato social” é o tema legado para a reflexão deste ano. Por meio dele, a Unesco conclama os países signatários da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas a se engajarem na luta pela não discriminação dessas populações, por sua justa inclusão social e participação política nos processos decisórios que lhes afeta, pelo direito à autodeterminação e à comunicação, pela autonomia cultural e pela reparação de danos sofridos.

Após mais de duas décadas de intensas discussões e negociações, o documento foi finalmente aprovado, em 2007, pelo plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas. Contou, na ocasião, com 143 votos a favor, 11 abstenções e quatro votos contrários (Estados Unidos, Nova Zelândia, Canadá e Austrália). O Brasil foi um dos que se manifestaram favoráveis à aprovação da medida. 

Territórios tradicionais

Os povos indígenas brasileiros estão atualmente presentes em todos os estados da federação, incluindo o Distrito Federal. Suas comunidades se espalham por 443 territórios tradicionais, cujos processos demarcatórios já se encontram devidamente homologados pela Presidência da República. 

Não obstante isso, a luta desses povos continua árdua. Por meio dela, o movimento indígena brasileiro reivindica não apenas a justa proteção dos territórios já demarcados, mas também clama pela devida regularização de outros 237, cujos processos ainda não foram devidamente finalizados. 

O cenário contraria o preceito constitucional inscrito no artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias, que estipulava o prazo de cinco anos para a finalização de todas as referidas demarcações. Caso a determinação tivesse sido devidamente seguida, a situação territorial dos povos originários no Brasil já estaria resolvida há quase três décadas. 

Mas esses litígios não são o único problema a perturbar a paz das comunidades indígenas brasileiras. Mesmo nas terras já demarcadas, o pesadelo das invasões e saques continua presente. Madeireiros, garimpeiros, grileiros, fazendeiros, traficantes e até mesmo governos são alguns dos autores implicados na grande contenda que ainda hoje ameaça a integridade física e territorial das nações originárias.

Para o advogado Leomar Xerente, recém-formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), a questão territorial é o tema que move, de forma geral, todo o movimento indígena, no Brasil. Ele lembra que muitos povos ainda estão na luta para terem suas terras demarcadas.

“Nossa luta é pautada principalmente pela Constituição de 1988 que, em seus artigos 231 e 232, garante o direito às terras, à cultura, às línguas e à organização social dos povos indígenas. Mas, o que acontece, é que isso ainda é, muitas das vezes, desrespeitado. E isso é justamente o que nós, lideranças, temos reiteradamente reivindicado: que o Governo respeite e assegure os nossos direitos”, arrematou o jovem líder Akwê (autodenominação do povo Xerente), que desde o ano passado é cacique de sua aldeia no Tocantins.

Marco Temporal

Defensores desses interesses, que atacam direitos constitucionais indígenas, têm ganhado cada vez mais força nos últimos anos. Suas campanhas resultam em uma série de iniciativas que vêm avançando tanto no Congresso Nacional quanto no Supremo Tribunal Federal (STF). 

A principal delas envolve a tese jurídica do “marco temporal” – uma bandeira atualmente utilizada por representantes do agronegócio para tentar barrar processos de demarcação. A argumentação apresentada é a de que populações indígenas só teriam direito a terras que estivessem devidamente ocupadas ou em disputa judicial até a data de promulgação da Constituição Federal de 1988.

Essa propositura está em pauta desde o início dos anos 2000 e aguarda agora votação junto à Suprema Corte brasileira. Por ser soberana, a decisão emitida pelos ministros do STF deverá encerrar os litígios sobre o tema. Dado o seu efeito vinculante e de declarada repercussão geral, caso a tese seja acatada, ela passará a ser aplicada a todos os casos em que envolver a situação anunciada, inviabilizando, assim, vários processos demarcatórios ainda em andamento. O julgamento decisivo do assunto, que estava previsto para o final de junho, foi adiado para o dia 25 deste mês.  

Outra matéria que também preocupa as nações indígenas é o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que tramita, atualmente, na Câmara dos Deputados. Além de reforçar a defesa do marco temporal, o texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a sua abertura para a exploração de garimpeiros.

No final de junho, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Casa aprovou o parecer favorável dado à propositura pelo seu relator, o deputado Arthur Maia (DEM-BA). O processo aguarda agora as devidas deliberações junto ao plenário da Câmara Federal. 

Para acompanhar essas decisões e lutar contra outros tantos retrocessos, mais de 850 povos indígenas de 45 etnias diferentes marcharam até Brasília, em meados de junho. O acampamento, montado na Esplanada dos Ministérios, durou quase duas semanas e marcou um período de intensas manifestações, que se espalharam por todo o País. 

O movimento Levante pela Terra repercutiu e ganhou a atenção pública de personalidades diversas. Uma carta entregue ao STF contra o Marco Temporal reuniu mais de 100 mil assinaturas. Entre elas, constavam nomes como o da cartunista Laerte, do DJ Alok, da atriz Alessandra Negrini e da modelo Gisele Bündchen.

A retomada das mobilizações do Levante pela Terra deverá ocorrer entre os próximos dias 22 e 28, deste mês de agosto. As atividades estarão concentradas novamente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Mais informações sobre o movimento podem ser encontradas na página da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). 

Direitos sociais e cidadania

A exemplo dos demais cidadãos brasileiros, o acesso à educação é um direito social que, constitucionalmente, também se estende às populações indígenas. No Ensino Superior, ele tem sido garantido principalmente por meio da política de cotas, que foi instituída pela Lei 12.711/12. No Básico, por meio de uma concepção diferenciada de escola, que vem se colocando cada vez mais próxima das demandas das comunidades. 

Esse processo vem sendo aperfeiçoado desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que assegurou, primeiramente, às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e sistemas próprios de aprendizagem (artigo 210). Depois, esses preceitos foram sendo, paulatinamente, regulamentados até serem aprimorados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), aprovada em 1996.

Um dos exemplos mais exitosos, neste aspecto, tem sido alcançado mediante a implantação, a partir de 2003, dos chamados cursos de Educação Intercultural, que já se fazem presentes em diversas instituições de ensino superior brasileiras. Na Universidade Federal de Goiás ele está associado à Faculdade de Letras e vem sendo ministrado desde 2007. Ao longo desses anos, mais de 300 professores indígenas foram formados e o oprograma atende, atualmente, contingente similar de alunos. O vestibular remoto de 2021 da UFG aprovou, recentemente, mais 40 novos estudantes indígenas. 

Os estudantes, tanto os egressos, quanto os matriculados, são todos provenientes da etnoregião Araguaia-Tocantins, que engloba os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Minas Gerais. Ao todo, 27 etnias destas localidades vêm sendo contempladas com as formações. São elas: Apinajé, Bororo, Gavião, Guajajara, Ikpeng, Javaé, Juruna, Kalapalo, Kamaiurá, Kanela, Kanela-Araguaia, Karajá, Karajá-Xambioá, Kayabi, Krahô, Krikati, Kuikuro, Mehinako, Metuktire, Tapirapé, Tapuio, Timbira, Xakriabá, Xavante, Xerente, Waura e Yawalapiti. 

A licenciatura conta atualmente com apenas 11 docentes efetivos e com a colaboração de vários docentes de outras unidades da UFG. Um deles é o professor Elias Nazareno, da Faculdade de História. Ele ministra aulas relacionadas aos conhecimentos indígenas e não indígenas, por meio dos chamados Temas Contextuais, e explica que o curso possui como princípios pedagógicos a interculturalidade e a transdisciplinaridade. Desse modo, os conteúdos ministrados deixam de ser meramente disciplinares, como ainda prevê a matriz curricular convencional de outras licenciaturas.

“A licenciatura em Educação Intercultural da UFG é um curso de formação de professores indígenas. A exemplo de outros no Brasil, ele foi criado para atender os preceitos constitucionais e a demanda reprimida, de professores indígenas nas aldeias, quanto à formação superior. Surgiu após muitas negociações e lutas junto com as lideranças indígenas e contou sempre com o apoio incondicional da reitoria da UFG. Até cerca de duas décadas atrás, a maioria dos professores das aldeias eram não indígenas. Os professores indígenas tinham, em geral, apenas o magistério, que é de nível médio”, contextualizou o professor. 

Nazareno informa que essa realidade vem mudando substancialmente ao longo dos últimos anos. “Hoje, já existe um impacto social muito grande dessas formações nas escolas e comunidades indígenas. No nosso curso, temos uma representação de quase 10% do total de povos indígenas brasileiros, e eu diria que 90% dos egressos do nosso curso estão atuando como professores nas escolas indígenas. Outros foram inseridos nos programas de cotas de pós-graduação da UFG. Temos vários que já fizeram mestrado e doutorado, por exemplo. É um processo de bastante êxito”, enfatiza. 

Não obstante isso, ele lembra que, no meio dessas conquistas, ainda há muitas batalhas a serem vencidas. Elias Nazareno diz que os desafios dessa área são gigantescos e maiores do que os enfrentados pela educação brasileira, em geral. Mas isso para os povos indígenas significa, afirma, um incentivo, visto que estão há 521 anos resistindo a exclusões e opressões de diversas naturezas e impostas pelo processo colonizador, que ainda se mantém vigente, em vários aspectos.

“Estamos vivendo um momento muito difícil, que muitos chamam de apagão na educação. Nossa luta agora é para garantir recursos materiais, financeiros e humanos, principalmente, pela criação de novos concursos para professores, que têm sido dificultados pelo Governo Federal”, reivindica o acadêmico.

Vale lembrar, que a educação é o que, muitas vezes, facilita o acesso dos indígenas a outros direitos sociais, como a saúde e o trabalho. É também o que garante uma melhor participação dessas populações na construção da cidadania . Um exemplo é o aumento que hoje se observa nos índices de representação política desses povos, que, embora ainda minoritário, teve acréscimo de 17% em relação a eleições anteriores. 

Etnias de todo o País elegeram, no último pleito municipal, 179 vereadores, oito prefeitos e 10 vice-prefeitos. Segundo levantamento feito pela Agência Câmara de Notícias, os partidos que mais elegeram candidatos indígenas foram o PT (24 eleitos), o MDB (23), o PSD (19), o PP (15) e o DEM (14). No Congresso Nacional, a única representante atual desses povos é a deputada Joenia Wapichana (Rede/RR). Ela assumiu o cargo depois de passados quase 40 anos da eleição do primeiro cacique para a Câmara Federal: o ex-deputado Mário Juruna, que foi eleito em 1982, pelo PDT.

Discussões atuais na Alego

Ao todo, os povos indígenas foram citados em quatro projetos parlamentares postos em tramitação na presente Legislatura da Alego. Segue lista com cada uma deles, por data de autuação na Casa.

Processo 3964/19 – Deputada Delegada Adriana Accorsi (PT). Dispõe sobre as formas de registro e de divulgação dos dados de violência contra crianças, idosos, negros, mulheres, índios, homoafetivos e pessoas com deficiência no âmbito do Estado de Goiás. A matéria encontra-se em fase de primeira discussão e votação.

Processo 4241/20 – Deputado Lissauer Vieira (PSB). Institui a Política Estadual Emergencial de Enfrentamento à covid-19, no âmbito dos territórios indígenas e quilombolas. A matéria foi sancionada pela Lei 20.880/20.

Processo 3586/21 – Deputada Lêda Borges (PSDB). Institui a Política Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades Indígenas. A matéria aguarda as votações plenárias do parecer favorável da CCJ. 

Processo 5484/21 – Deputada Delegada Adriana Accorsi (PT). Reserva 50% das vagas de estágio para pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e quilombolas, nos programas de estágio nos órgãos públicos do Estado de Goiás (Assembleia Legislativa, Poder Executivo, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Tribunais de Contas, Tribunal Eleitoral), bem como as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista. A matéria aguarda o relatório do deputado Dr. Antônio (DEM), na CCJ. 

*** Os dados não referendados desta reportagem foram todos encontrados ou na página da Funai – órgão responsável pela promoção da política indigenista do país, ou na imprensa indígena, principalmente na página da Apib, conforme já citada.

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